Somália: “A minha mãe trabalhou para MSF… Agora, 30 anos depois, também faço parte da equipe”

Em “Histórias de MSF”, compartilhamos relatos dos nossos profissionais ao redor do mundo; a somali Fatumazahra Khalif conta como o trabalho em conjunto com a comunidade é essencial para fornecer cuidados de saúde de qualidade

Fatumazahra Khalif é coordenadora de promoção de saúde de MSF na Somália. Ela explica o impacto que a promoção de saúde pode ter e por que trabalhar com as comunidades locais é fundamental para salvar vidas.

“Desde que eu era criança, a minha mãe sempre deu muita importância à educação. Ela é enfermeira e está sempre contribuindo para a comunidade. Trabalhou para MSF há muito tempo, nos anos 90. Agora, 30 anos depois, eu também faço parte da equipe.

Atuei em três projetos de MSF na Somália, principalmente em Mudug, Sool e Baidoa. Os nossos projetos estão centrados em cuidados de maternidade e pediátricos, programas de nutrição e clínicas para as pessoas que vivem nos acampamentos de deslocados e nas suas imediações. O setor de saúde na Somália está em situação crítica, com taxas de mortalidade materna e neonatal entre as piores do mundo.

– Profissional de MSF medindo a circunferência média do braço (MUAC) de uma criança no campo de deslocados internos de Elbet, Baidoa. © Suleiman Hassan/MSF
Trabalhando com a comunidade

Para mim, a promoção de saúde tem dois aspectos principais: compartilhar informações e aconselhamento com a comunidade e aprender com ela sobre os desafios que enfrentam, as necessidades que têm e como MSF pode melhorar os serviços de saúde que oferecemos.

Por exemplo, muitas mulheres aqui dão à luz em casa. Para algumas delas, isso se deve ao fato de sempre terem confiado em parteiras tradicionais, que não tiveram acesso à formação médica e podem não estar capacitadas para prestar assistência em caso de complicações no parto. Por isso, nós informamos às mulheres sobre os serviços gratuitos de maternidade de MSF.

Mas mesmo as mães que queiram ir para as unidades de saúde podem não conseguir fazê-lo. Nos grupos de discussão de um projeto, as mulheres nos disseram que não tinham dinheiro para pagar o transporte, por isso, agora fornecemos uma ambulância que permite que as mães em trabalho de parto cheguem ao hospital, mesmo à noite. Essas informações são fundamentais para nos ajudar a compreender como podemos conceber os nossos serviços para que tenham o maior impacto possível na vida das pessoas.

Combatendo a desinformação

Também descobrimos que quando as comunidades não têm acesso a toda a informação de que necessitam sobre saúde, podem começar a circular boatos perigosos. É aí que os promotores de saúde são vitais.

Recentemente, um enorme surto de cólera estava a assolar uma das regiões onde trabalhamos. O cólera se propaga através da água ou de alimentos contaminados. Provoca diarreia grave e vômitos, levando as pessoas a um nível de desidratação que pode tornar a doença rapidamente fatal, especialmente em crianças ou idosos.

Podemos tratar o cólera, mas durante esse surto, verificamos que as pessoas só se dirigiam às instalações médicas quando já era tarde demais. A nossa equipe conversou com diferentes membros da comunidade e descobriu que muitas pessoas estavam mal-informadas, acreditando que o cólera era apenas uma febre e que se fossem ao hospital morreriam. Como as pessoas adiavam a ida ao hospital até estarem em estado crítico, os médicos nem sempre conseguiam salvá-las, então pudemos ver como esse boato estava sendo levado a sério.

Por isso, trabalhamos com o Ministério da Saúde na realização de uma campanha de sensibilização em massa. Recorrendo a anúncios no rádio e a equipes com alto-falantes. Explicamos que, se as pessoas se dirigissem prontamente às instalações médicas, receberiam um tratamento que poderia realmente salvar suas vidas. Funcionou. As pessoas começaram a vir e, como resultado, conseguimos salvar vidas e reduzir a propagação do surto.

Minha motivação

Penso muitas vezes numa menina que conheci numa clínica oftalmológica apoiada por MSF. Essas clínicas percorrem diferentes áreas, trabalhando intensivamente durante várias semanas para prestar cuidados de saúde relacionados à visão.

Frequentemente, esse trabalho possibilita a primeira oferta de serviços oftalmológicos numa área durante anos, por isso, como promotores de saúde, a nossa atuação com os líderes comunitários tem como objetivo garantir que as pessoas saibam quando e como podem ter acesso a esses cuidados.

Essa menina tinha cerca de 8 anos de idade e havia sido parcialmente cega durante toda a sua vida. No entanto, a comunidade ajudou a divulgar a clínica e os pais decidiram trazê-la. A equipe cirúrgica conseguiu realizar a operação e restaurar a sua visão.

Encontrei com ela depois da cirurgia – estava tão feliz. Quando preciso de incentivo, penso nela. As pessoas nas regiões onde trabalhamos vivem frequentemente em condições muito difíceis, e há muito mais a se fazer para garantir que tenham acesso aos cuidados de que necessitam. Mas penso que, ao trabalhar em parceria com as comunidades, por vezes é possível ter um impacto real. Antes, essa menina era parcialmente cega, mas agora consegue enxergar.

Por que é que estamos aqui

O surto de cólera não foi um incidente isolado. A situação sanitária na Somália é terrível. Centenas de milhares de pessoas foram deslocadas devido ao conflito armado e à violência, sobrecarregando as limitadas instalações de saúde.

Entretanto, anos de seca significaram colheitas insuficientes, deixando muitas comunidades com acesso limitado tanto à água potável como a alimentos. As taxas de desnutrição são altas, e os surtos de doenças transmitidas pela água e de sarampo atingiram severamente algumas regiões.

Desafios como estradas inacessíveis, escassez de combustível e de energia elétrica tornam o transporte de medicamentos e de equipamento médico extremamente difícil, e esses suprimentos são limitados ou inexistentes em muitas áreas.

E há problemas de segurança que podem ser perigosos, tanto para as comunidades que servimos como para quem tenta chegar até elas.

Mas os princípios de imparcialidade e neutralidade de MSF são muito importantes para mim: trabalhamos para fornecer cuidados de saúde às pessoas que mais necessitam, independentemente das suas diferentes crenças e normas culturais. Por isso, procuro me lembrar de algo que um colega disse recentemente: apesar das dificuldades, nunca devemos desistir do que estamos fazendo”.

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