Sudão: pessoas deslocadas pela guerra lutam para sobreviver em meio a vazio humanitário

Em Darfur Central, MSF presta cuidados médicos e apoia o Ministério da Saúde do país com reabilitação de estruturas e treinamento de profissionais.

Buraco de bala causado por tiroteio na sala de cirurgia do Hospital Universitário de Zalingei, estado de Darfur Central, Sudão. © MSF/Juan Carlos Tomasi

Quando começou a guerra no Sudão, em abril de 2023, as pessoas deslocadas que viviam no acampamento de Al-Hasahisa, em Zalingei, capital do estado de Darfur Central, se viram em meio ao fogo cruzado entre as Forças de Apoio Rápido e as Forças Armadas Sudanesas. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), até novembro, o acampamento ficou sitiado pelas Forças de Apoio Rápido durante meses, impossibilitando que as pessoas feridas procurassem cuidados médicos do lado de fora e impedindo a chegada do abastecimento de água e alimentos.

O acampamento de Hasahisa, que já chegou a abrigar cerca de 50 mil pessoas deslocadas – a maioria no início da década de 2000 – acabou por se esvaziar à medida em que as pessoas conseguiam fugir dos bombardeios, deixando para trás casas de tijolos danificadas e “ruas fantasmas”. Sem ter para onde ir, se abrigaram durante meses a fio em escolas, bancos, quartéis de bombeiros e outros acampamentos saqueados e abandonados por toda a cidade.

Sobrevivendo sem assistência

Na noite de 2 de novembro, Aissa e sua família embarcaram em carroças puxadas por burros e precisaram fugir do acampamento de Hasahisa. A maior parte dos pertences de Aissa foram roubados, e ela ficou apenas com um colchão, que posteriormente se perdeu na estrada. Ela seguiu a mãe e os filhos enquanto eles iam na frente.

“Fomos perseguidos e forçados a sair”, lembra Aissa, de 50 anos. “Alguns homens foram mortos. Outros foram detidos. Nossas coisas foram levadas e roubadas. Quando estávamos saindo, fomos parados [por homens armados] e tivemos que esperar até de manhã. Eles amarraram [as pessoas] e espancaram os meninos.”

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Por mais de seis meses, Aissa e sua família viveram em um contêiner no devastado Corpo de Bombeiros de Zalingei. Como outras 6,5 milhões de pessoas deslocadas no Sudão, eles dependem principalmente da ajuda humanitária, que continua indisponível em muitos locais. Sobrevivendo com trabalhos que fornecem pouca estabilidade e baixo retorno financeiro, Aissa e a sua família não têm acesso adequado a água, alimentos ou serviços essenciais, incluindo cuidados médicos.

“Não há como ganhar dinheiro”, explica Aissa. “Nós simplesmente saímos e vagamos pela cidade. Se encontramos alguém para quem possamos lavar roupa, fazemos isso e tentamos conseguir algum dinheiro.”

Contêiner transformado em abrigo improvisado, onde Aissa e sua família estão vivendo após terem fugido dos conflitos em Zalingei, no estado de Darfur Central, Sudão. © MSF/Juan Carlos Tomasi

Do outro lado da rua do quartel dos bombeiros, Najwa, de 30 anos, e os seus três filhos buscaram abrigo em um banco saqueado da cidade com outras 30 pessoas deslocadas do acampamento de Hasahisa. Ela criou uma ilusão de casa ali: cofres de banco usados como armários, janelas cobertas de tijolos antes destinadas à entrada de luz solar e parapeitos de janelas que agora abrigam alguns sacos deteriorados e plantas murchas.

Najwa buscou abrigo em um banco saqueado com outras pessoas deslocadas do acampamento de Hasahisa. © MSF/Juan Carlos Tomasi

“Vivemos nestas condições, sem teto e sem comida”, explica Najwa, apontando para os lençóis rasgados pendurados sobre o local. “Nós nunca recebemos nenhum auxílio, nem mesmo um sabonete. Em breve chegará a estação das chuvas, e não sabemos para onde ir.”

Sem acesso a cuidados de saúde

No coração da cidade, a Universidade de Zalingei – que já foi um centro para estudantes de medicina, agricultura e tecnologia – encontra-se agora deserta. Fardos de feno para burros são armazenados no auditório, enquanto os prédios do campus são conectados por varais para estender roupas.

Universidade de Zalingei, no estado de Darfur Central, Sudão, saqueada e danificada. © MSF/Juan Carlos Tomasi

Transformada em um abrigo improvisado, mais de mil pessoas vivem nas salas de aula e nos escritórios da universidade, a maioria deslocadas do acampamento de Hasahisa. A maior parte é formada por agricultores, que agora não conseguem cultivar regularmente e obter rendimentos. Por causa da falta de assistência humanitária, um depende do outro nessa comunidade.

“Todos nós fazemos contribuições e qualquer pessoa pode partilhar [medicamentos]”, explica Mohammed, um dos primeiros a fugir para a universidade. “Compartilhamos com a comunidade e tratamos o paciente.”

Mohammed em seu abrigo improvisado na Universidade de Zalingei, estado de Darfur Central, Sudão. © MSF/Juan Carlos Tomasi

A apenas 10 minutos de distância, Khadija espera que sua filha Malaka receba alta do Hospital Universitário de Zalingei. É o primeiro dia que as equipes de MSF reabrem o pronto-socorro reabilitado, e Malaka é uma das primeiras pacientes. Deslocada e forçada a vender os seus pertences restantes para ganhar dinheiro, Khadija não tem conseguido comprar medicamentos para a filha.

“Viajei durante mais de uma hora até o Hospital Universitário de Zalingei para minha filha, que testou positivo para malária, receber tratamento”, explica Khadija. “No acampamento de Hasahisa [onde viviam anteriormente], recebíamos medicamentos gratuitamente. Aqui em Zalingei não é a mesma coisa. Mas hoje [pela primeira vez] recebemos remédios gratuitos.”

Apoio a um sistema de saúde em colapso

Em meio à violência em grande escala no Sudão, profissionais e instalações médicas foram atacados e saqueados, deixando grande parte do sistema de saúde danificado ou inoperante. O Hospital Universitário de Zalingei, única unidade de saúde secundária remanescente no estado de Darfur Central, também foi saqueado diversas vezes durante a guerra.

Departamento de emergência do Hospital Universitário de Zalingei, no Sudão. © MSF/Juan Carlos Tomasi

Após outro saque, em maio de 2023, o Ministério da Saúde do Sudão fez todo o esforço para manter o hospital funcionando, mobilizando voluntários por toda a cidade. Uma delas era a enfermeira Assma, de 21 anos. Poucas semanas depois de um saque em maio, o hospital foi novamente atacado, desta vez resultando na morte de um paciente.

“Eu estava trazendo uma paciente para a sala de cirurgia quando o médico levou um tiro no pescoço”, lembra Assma. “Ele estava fazendo uma cesariana. Depois disso, a paciente morreu no corredor.”

A guerra prejudicou totalmente o acesso das pessoas aos cuidados de saúde no Sudão.”
– Victor García Leonor, coordenador de emergência de MSF.

Para restaurar o atendimento especializado no estado, as equipes de MSF estão prestando atendimento secundário no Hospital Universitário de Zalingei e apoiando o Ministério da Saúde do país treinando e incentivando profissionais, bem como reabilitando os departamentos de emergência, maternidade e pediatria. Em abril, MSF realizou mais de 900 consultas de emergência, quase 400 internações pediátricas, quase 100 partos seguros e tratou mais de 50 crianças com desnutrição no centro de nutrição terapêutica intensivo.

“A guerra prejudicou totalmente o acesso das pessoas aos cuidados de saúde no Sudão”, explica o coordenador de emergência de MSF, Victor García Leonor. “Os preços dos medicamentos e dos alimentos dispararam, tornando-os inacessíveis às pessoas — especialmente aos deslocados — e a maioria das instalações de saúde já não funciona mais adequadamente. Ao mesmo tempo, o país enfrenta um vazio humanitário, que agrava ainda mais as enormes necessidades de saúde.”

Apesar de o Sudão ter uma das maiores crises de deslocamento do mundo, muitas organizações humanitárias não regressaram desde a evacuação no início da guerra, no ano passado. Hoje, depois de mais de um ano de conflitos, o Sudão continua enfrentando um vazio humanitário.

MSF apela a todas as partes envolvidas na guerra para que respeitem as proteções especiais que os profissionais de saúde e as instalações médicas recebem de acordo com o Direito Humanitário Internacional, bem como garantam o acesso humanitário seguro a todas as áreas do Sudão, sem exceção, e parem os bloqueios de suprimentos e profissionais.

Além disso, para garantir que a assistência humanitária chegue às pessoas, a ONU deve urgentemente ampliar sua resposta e concentrar-se em resultados claros relacionados com o aumento do acesso, para que contribua ativamente para permitir um aumento rápido e massivo da assistência humanitária.

 

Atualmente, MSF trabalha e apoia mais de 30 unidades de saúde em 9 estados do Sudão: Cartum, Al Jazirah, Nilo Branco e Azul, Al Gedaref, Darfur Ocidental, Darfur do Norte, Sul e Central e Mar Vermelho. As nossas equipes também atuaram recentemente em Kassala. Realizamos atividades em áreas controladas pelas Forças Armadas Sudanesas e pelas Forças de Apoio Rápido. Oferecemos atendimento a traumas, atendimento materno e pediátrico e tratamos a desnutrição, junto com outros serviços de saúde. As equipes de MSF também apoiam refugiados sudaneses e repatriados no Sudão do Sul e no leste do Chade.

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