Sudão: testemunhas da guerra relatam histórias de dor e sobrevivência

Guerra completa um ano e ajuda às milhões de pessoas afetadas é uma gota no oceano em meio a bloqueios criados por grupos armados; MSF pede uma ampliação urgente e rápida da resposta humanitária

Khartouma e os filhos fugiram dos confrontos armados no Sudão © MSF

A guerra no Sudão completa um ano nesta segunda-feira, 15 de abril de 2024, e já é uma das piores catástrofes provocadas pelo homem nas últimas décadas. Os confrontos entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF) lideradas pelo Governo e as Forças Paramilitares de Apoio Rápido (RSF) provocam uma crise humanitária sem precedentes.

É uma questão de vida ou morte para milhões de pessoas permitir urgentemente o acesso humanitário seguro.

Enquanto governos e autoridades, organizações humanitárias e doadores se reúnem nesta segunda-feira, 15 de abril, em Paris, para discutir formas de melhorar a prestação de ajuda humanitária, Médicos Sem Fronteiras (MSF) faz um apelo urgente para que intensifiquem imediatamente a resposta humanitária.

Segundo a ONU, mais de oito milhões de pessoas já foram forçadas a fugir das suas casas e foram deslocadas várias vezes, e estima-se que 25 milhões de pessoas – metade da população do país – necessitam de assistência humanitária.

Os bombardeios e ataques em operações terrestres em áreas residenciais durante todo esse período atingiu hospitais e outras instalações de saúde. O acesso à ajuda humanitária e médica ficou muito restrito pelos conflitos armados entre as Forças Armadas Sudanesas e Forças de Apoio Rápido (SAF e RSF, nas siglas em inglês).

Lesões provocadas pelos ferimentos a bala, insegurança alimentar, problemas de saúde mental, condições de vida difíceis se agravam e meio a surtos de doenças provocadas pela falta de suprimentos, medicamentos e vacinação. Os ataques aos direitos civis se revelam nos relatos de abuso sexual relacionados à violência de gênero, torturas e saques.

Embora MSF trabalhe em boa cooperação com o Ministério da Saúde, o governo do Sudão tem obstruído persistente e deliberadamente o acesso à ajuda humanitária. Em áreas de difícil acesso, como Darfur, Cartum ou Al Jazirah, MSF muitas vezes é a única ou uma das poucas organizações humanitárias internacionais presentes, embora as necessidades excedam em muito a nossa capacidade de resposta. Mesmo em áreas mais acessíveis, como os estados do Nilo Branco, Nilo Azul, Kassala e Gedaref, a resposta global é insignificante: uma gota no oceano.

É urgente que esses grupos armados parem de bloquear a ajuda humanitária e garantam que o pessoal médico e humanitário possa trabalhar com segurança e sem obstruções.

Pessoas afetadas por esses conflitos e profissionais de saúde que atuam no Sudão relatam abaixo algumas histórias de quem foi atingido por essa crise humanitária e mantém esperança pelo fim dos conflitos. Precisamos falar sobre o Sudão.

Khadija fugiu para um acampamento de Darfur Central

Khadija Abakkar com a filha no hospital de Zalingei, em Darfur Central / © MSF

“Sou Khadija Mohammad, tenho 25 anos, e fui deslocada pela guerra no Sudão. Há cinco meses, fui forçada a fugir da minha casa no acampamento de deslocados de Hasahissa, em Zalingei, no estado de Darfur Central, no Sudão e me refugiar no acampamento de deslocados de Tululu, a aproximadamente uma hora de distância.

Sofremos muito. Durante três dias não conseguimos dormir. Agora, onde estamos também é ruim porque não temos comida suficiente”

No acampamento de Tululu, não temos acesso a cuidados de saúde para mim e para a minha família. Viajei mais de uma hora até ao hospital universitário de Zalingei para receber tratamento do meu filho Malaki, que testou positivo para malária.

No acampamento de Hasahissa recebíamos medicamentos gratuitamente. Aqui em Zalingei não é a mesma coisa. Mas hoje, pela primeira vez, recebemos medicação de graça.”

Khartouma buscou refúgio com os filhos em Adré, no Chade

“Quando confrontos armados e bombardeios se aproximaram da minha aldeia, não tive outra escolha senão partir. Fugimos com um grupo de pessoas, mas algumas delas não conseguiram chegar à fronteira. Com meus vizinhos, fugimos de carro e levamos o máximo de bagagem possível. Mas ao longo do caminho ocorreram ataques, e pessoas foram mortas. Fomos saqueados por homens armados, mas nós tivemos sorte, eles levaram apenas os nossos pertences e não as nossas vidas.

Chegamos tarde da noite e de mãos vazias na fronteira. No dia seguinte, fomos ao local de trânsito de refugiados de Adré, onde encontrei a minha tia. Ela dividiu conosco o pouco que tinha: uma lona, alguns pedaços de madeira e três quilos de farinha para podermos pelo menos ter um abrigo, dormir e comer. Nos últimos quatro meses, eu me beneficiei de apenas de duas distribuições, com diferentes sacos de cereais, farinha, óleo e outros itens. Mas não foi suficiente para cobrir as nossas necessidades.

A vida é muito difícil aqui. Mas o que mais me preocupa são as crianças. Não posso sustentá-las, nem mesmo para conseguir sapatos. Não há escola, então eles não fazem nada o dia todo e andam em círculos. Eles não querem ficar no acampamento, querem voltar para o Sudão.”

“O meu marido fugiu antes de nós porque tem outra esposa em El Geneina. Ele foi transferido para um acampamento oficial em Farshana. Estou tentando desesperadamente me juntar a ele com as crianças, mas não sei quando isso vai acontecer.”

William escapou com vida de um bombardeio

William Jokite paciente de MSF no Sudão do Sul / © MSF

“O meu nome é William Jokite, tenho 19 anos, sou sul-sudanês e trabalhava em Cartum quando a guerra eclodiu. O armazém onde eu estava foi bombardeado e 15 das 20 pessoas que estavam ali morreram no ataque.

Depois que pensamos que tudo se acalmou, rastejamos para fora. Um dos meus colegas tentou se levantar e correr, mas o vimos levando um tiro no pescoço, e ele morreu na hora.”

Com um carro que encontramos, dirigi até ficar sem combustível e depois seguimos a pé. No entanto, uma lesão sofrida quando tomei banho no rio me atrasou e meus amigos me deixaram para trás para viajar mais rápido.

Sozinho e com dores, caminhei três dias e três noites sem descanso, piorando a lesão no pé. Temo pelo seu futuro, mas devo prosseguir para me reunir com a minha família em Maban, no Sudão do Sul, relembrando as noites em que acordo com as memórias dos meus irmãos brincando no quintal. Eu só queria estar com eles novamente.”

Os desafios do Dr. Ibrahim para salvar vidas

“Sou o Dr. Ibrahim (*) e, desde 2022, trabalho como médico generalista de Médicos Sem Fronteiras. A minha história começou em uma enfermaria de desnutrição do Hospital Al-Damazin. Um ano depois, a guerra teve início e eu estava em Wad Madani, o centro do conflito.

Nos primeiros dias, observámos o desenrolar das notícias, vendo fluxos de pessoas deslocadas a caminho de Cartum [capital do Sudão] para Wad Madani. Montamos clínicas nos acampamentos, oferecendo toda ajuda médica possível. Mas ao testemunharmos a exaustão marcada nos rostos dos deslocados, percebemos que as suas necessidades iam além do tratamento físico. Eles também precisavam de apoio psicológico.

Durante sete meses, trabalhamos incansavelmente nestes acampamentos, tratando a desnutrição, o sarampo, a cólera e outras doenças prevalentes e prestando consultas de saúde mental. Nos tornamos uma tábua de salvação para estas pessoas até que o conflito se intensificou, nos forçando a sair.

Em uma tentativa desesperada de continuar o nosso trabalho, tentamos operar a partir do Hospital Wad Madani, mas a falta de energia, água e condições de segurança tornaram isso impossível. A cidade se tornou uma cidade fantasma.

A viagem dos deslocados até Wad Madani foi de partir o coração. Alguns chegaram em carroças, outros nas costas de burros. Muitos caminharam cinco dias sem comer, chegando em estado de exaustão total. As doenças eram galopantes e os suprimentos diminuíam.

Nossas clínicas móveis estavam lotadas de pacientes. Todos os dias, mais de 200 pessoas esperavam para nos ver. Apesar da intensa pressão, resistimos, classificando os casos de leves a graves, transferindo os casos mais complicados para o hospital e tratando os menos graves no local.

Nos primeiros dias do ataque a Wad Madani, enfrentamos o som das explosões para ajudar a equipe do hospital, tratando ferimentos à bala e de estilhaços. Mas, à medida que os combates se aproximavam perigosamente do hospital, tivemos de evacuar os pacientes e voltar para casa.

Fomos interrogados por homens armados. A nossa base foi revistada, e os nossos veículos foram levados sob a mira de uma arma. No dia seguinte, parte da nossa equipe foi para outros estados, enquanto o resto de nós continuou a prestar apoio no Hospital Bashair, em Cartum.

Hoje, nosso maior desafio é a escassez de suprimentos médicos. Ficamos sem equipamento cirúrgico e estamos prestes a interromper todo o trabalho, a menos que cheguem suprimentos.

Assumi um risco pessoal, decidindo ficar e ajudar enquanto evacuava minha própria família para a Arábia Saudita. A decisão de continuar, apesar dos tiros e do perigo, foi uma luta, mas confiei em Deus e escolhi ajudar os outros.”

Agora, estou em Cartum, trabalhando em meio ao barulho de balas e bombas. Não vejo a minha família há quatro meses, e eles já não estão no Sudão. Eles estão seguros na Arábia Saudita. Sinto muita falta deles, mas sei que tenho um dever para com o meu país e o seu povo.

Antes da guerra, a vida era normal. Eu ia para o hospital, ajudava os pacientes e depois voltava para minha família. Agora, minha cidade está em ruínas, minha família se foi e a sensação de medo é generalizada.

Nestes tempos sombrios, minha esperança permanece. Anseio pelo dia em que a guerra acabe, a paz prevaleça e possamos trabalhar na construção e desenvolvimento do nosso país sem a ameaça de sermos forçados a sair.”

Chira sonha em terminar os estudos

Chira Casah, refugiada do Sudão / © MSF

“Meu nome é Chira Casah, sou uma refugiada sudanesa de 24 anos. Sair de Cartum foi uma jornada angustiante, marcada pelo desespero por ajuda médica para meu distúrbio da tireoide, que causa febre, tontura, desequilíbrios hormonais, sono insatisfatório e perda de peso quando não tratada. Ao fugir com a minha mãe, o meu irmão e a minha irmã, perdemos contato com o meu pai e dois outros irmãos no caos da guerra. Espero que eles ainda estejam vivos.

Eu era estudante universitária. Meus sonhos agora parecem distantes em meio à incerteza do nosso futuro. Apesar de sentir que minha família está se desintegrando, procuro me agarrar à esperança.”

A vida no acampamento em Kosti é dura, com minha mãe e minha irmã lutando para se adaptar ao ambiente repleto de moscas, mosquitos, ratos e animais selvagens. A insegurança e a criminalidade são altas aqui.

Apesar dos meus esforços para conseguir medicação para o meu problema de tireoide, o hospital não tem os medicamentos necessários. Expliquei meu estado ao médico e contei o nome dos remédios que costumo tomar, mas ele não pôde ajudar.

Aguardamos meus dois irmãos ainda em Kosti, um dos quais luta contra a esquizofrenia. Nossa jornada depende de sua capacidade de se juntar a nós, moldando o caminho incerto que temos pela frente. Esta é a minha história de sobrevivência em meio às provações do deslocamento e da doença.”

A esperança da enfermeira Alaa

Alana Ahmed, enfermeira supervisora de MSF no Sudão / © MSF

“Sou Alaa Ahmed, enfermeira supervisora de MSF há mais de cinco anos. Minha jornada com MSF começou em Cartum. Depois da guerra, trabalhei nas instalações de Umdawanban, um hospital apoiado por MSF. Nossa equipe realizou atividades que salvavam vidas nas enfermarias pediátrica e maternidade, na sala de parto, e em iniciativas de planejamento familiar. Desde julho de 2023, conseguimos curar milhares de pacientes, oferecer consultas hospitalares e ambulatoriais e auxiliar mulheres durante o parto. Esta experiência fortaleceu meu compromisso com a humanidade.

Antes de a sombra da guerra cair sobre nós, trabalhei em outro projeto de MSF, prestando apoio ao hospital de Omdurman e arredores, oferecendo assistência médica onde fosse necessário. A guerra forçou eu e a minha família a nos mudarmos para Al-Gedaref, de onde mais tarde me juntei à equipe de MSF no projeto Umdawanban.

Agora estou em Porto Sudão apoiando nossas atividades de clínicas móveis e coordenando atividades de enfermagem para outros projetos no país. Apesar da devastação, continuamos o nosso trabalho. Assumi o papel de enfermeira e supervisora, garantindo que os nossos serviços de enfermagem continuem a funcionar.

O Hospital Umdawanban é a principal instalação operacional nesta área. Mesmo quando enfrentamos desafios, como um paciente com diabetes grave que chega inconsciente e em estado crítico, o nosso apoio médico revela-se essencial para salvar a sua vida e muitas outras.

A alegria de ver estes pacientes recuperarem e saírem do hospital mantém forte a nossa determinação de seguir em frente, nos lembrando do porquê continuamos esse apoio médico humanitário.”

Por causa da sombra negativa da guerra, a relação com os pacientes não se limita ao aspecto profissional de médico e paciente, mas torna-se mais humana, interagindo com o sofrimento que enfrentam no acesso aos atuais equipamentos de saúde.

Ao completarmos o primeiro ano da guerra, o meu coração dói pelo sofrimento que esta infligiu – fome, falta de serviços de saúde e um futuro incerto. No entanto, são as histórias pessoais daqueles que ajudamos, os seus desafios, mas também as suas esperanças, que transformam a nossa relação de meramente médica para profundamente humana.”

A ação de MSF no Sudão

Nossas equipes no Sudão fornecem tratamento para pessoas feridas no conflito, clínicas móveis para atender pessoas deslocadas, tratamento de doenças transmissíveis e não transmissíveis, cuidados de saúde materna e pediátrica, serviços de água e saneamento, doação de medicamentos e suprimentos médicos para instalações de saúde.

Também fornecemos incentivos financeiros, treinamento e apoio logístico à equipe do Ministério da Saúde do país. Além disso, MSF dá seguimento a algumas de suas atividades médicas que já ocorriam antes do início dos conflitos.

MSF apela às partes em conflito para que cumpram o Direito Internacional Humanitário e as resoluções humanitárias da Declaração de Jedá, estabelecendo mecanismos para proteger os civis e garantir o acesso humanitário seguro a todas as áreas do Sudão, sem exceção – incluindo o fim dos bloqueios.

MSF também apela à ONU para que demonstre mais ousadia face a esta enorme crise e se concentre em resultados claros, para que contribuam ativamente para permitir um aumento rápido e massivo da assistência humanitária. E também pede para que os doadores aumentem o financiamento para a resposta humanitária no Sudão.

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(*) Nome alterado para proteger a identidade

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