Sudão: “Um quadro sombrio e enormes necessidades”

Gerente de Advocacy e Assuntos Humanitários de MSF em Cartum reflete sobre a situação enfrentada pelas pessoas deslocadas no Sudão.

Equipe de MSF fornece consulta médica em local comunitário em acampamento para pessoas deslocadas em Kassala, no Sudão. © MSF

Em março de 2023, Matt Cowling embarcou para Cartum, capital do Sudão, em seu primeiro projeto com MSF como gerente de Advocacy e Assuntos Humanitários. Um mês depois, no entanto, o conflito entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF) e as Forças de Apoio Rápido (RSF) eclodiu. Por quase um ano, Matt trabalhou com MSF, desempenhando diversas funções em nossa resposta emergencial e acompanhando as rotas de deslocamento do povo sudanês em todo o país. A sua experiência de um ano o levou a partilhar as suas observações sobre a violência em curso no Sudão.

“Comecei meu trabalho com MSF no Sudão, na capital Cartum. Fiquei animado para iniciar esta nova função e fazer parte das operações de MSF no país. A rica cultura sudanesa era muito interessante e nova para mim. MSF está aqui há muito tempo, o que me instigou. Mal sabia eu o quão agitado e desafiador se tornariam os meus dias no Sudão.

Quando eclodiram os primeiros conflitos em Cartum, em meados de abril, tivemos de passar oito dias em hibernação em Cartum, algo para o qual nenhum de nós estava preparado. Ninguém previu o conflito, todos pensávamos que seria em Darfur e não prevíamos que a SAF e a RSF começariam a lutar nas ruas de Cartum.

Estávamos localizados em uma área na parte central de Cartum chamada Amarat. Nos sentíamos relativamente seguros em nossa casa de hóspedes, mas outros colegas de MSF estavam bem próximos aos confrontos. Os aviões de combate sobrevoavam constantemente, e as explosões eram constantes. Foi um momento muito tenso.

A evacuação foi igualmente, se não mais, aterrorizante e incerta. Estávamos tentando entender onde ficavam os postos de controle, saindo da cidade, mas ninguém sabia. Por fim, MSF organizou um comboio para Gedaref, onde fiquei por um mês. Depois, passei a trabalhar com a equipe de resposta a emergências baseada em Porto Sudão. Lá, contraí dengue e fui retirado para fazer o tratamento. Tirei algum tempo para me recuperar antes de voltar a Porto Sudão em meados de novembro, onde trabalhei com o escritório de coordenação de MSF antes de seguir para Wad Madani e depois para Tenedba em Gederef.

 

Deslocamento em todas as direções

Nunca esquecerei uma mulher que conheci enquanto trabalhava em Gedaref. Ela morava em um abrigo improvisado em um local comunitário com seus filhos. Ela falava bem inglês e compartilhou a pouca ajuda que receberam. Eu os encontrei pela primeira vez em Tenedba, onde fornecíamos assistência alimentar e conduzíamos uma clínica móvel.

Um mês depois, devido à escassez de recursos e opções limitadas, ela e os filhos se mudaram para um centro de acolhimento em Kassala. Ela me reconheceu. Eles ficaram desapontados com a falta de ajuda e precisavam desesperadamente encontrar segurança. Estavam sendo alertados a deixar a cidade, mas não sabiam para onde ir. E precisavam muito de comida.

Ver a mesma pessoa em cidades diferentes, sob as mesmas circunstâncias difíceis, me comoveu profundamente. Achei uma coincidência impressionante ter estado duas vezes no mesmo lugar e na mesma hora que ela. Esse foi um momento significativo para mim.

“Com acesso limitado aos cuidados de saúde, muitas pessoas viviam em abrigos improvisados ou locais comunitários, mas também dormiam na rua.”

Em 15 de dezembro, novos confrontos entre RSF e SAF eclodiram no estado de Al Jazirah, quando o conflito se espalhou para Wad Madani, milhões de pessoas fugiram para estados adjacentes como Gedaref, Kassala, e Mar Vermelho, que incluía o leste do Sudão. Já estávamos conduzindo uma avaliação no estado de Kassala e, como resultado, MSF começou a fornecer ajuda.

As condições em Wad Madani já eram terríveis. Com acesso limitado aos cuidados de saúde, muitas pessoas viviam em abrigos improvisados ou locais comunitários, principalmente escolas, mas também dormiam na rua. Havia aproximadamente 40 mil pessoas deslocadas que fugiram para Kassala, somando-se às mais de 150 mil pessoas que já se encontravam no estado após os confrontos em Cartum no ano anterior.

MSF começou a apoiar quatro centros de cuidados de saúde primários, oferecendo um pacote completo de cuidados de saúde básica, incluindo encaminhamentos de saúde sexual e reprodutiva. Este esforço durou seis semanas, após as quais o projeto foi prorrogado por mais quatro semanas. Durante esse período adicional, MSF estabeleceu clínicas móveis direcionadas aos principais locais comunitários.

 

Remédio ou comida?

Da clínica móvel, e com a chegada do inverno no Sudão, sintomas como tosse, constipação e gripe provocavam frequentemente infecções do sistema respiratório, a morbilidade mais comum. Viver em abrigos inadequados ou predominantemente ao ar livre e de qualidade inferior pode ser um fator preocupante no agravamento destas doenças.

“As pessoas foram forçadas a tomar decisões como: ‘Devo comprar comida ou compro minha insulina?’”

Paralelamente, testemunhamos barreiras significativas para as pessoas terem acesso a medicamentos para doenças crônicas. Por exemplo, os preços da insulina aumentaram muito. Quando as pessoas passaram a viver em locais comunitários após o colapso do Fundo Nacional de Seguro de Saúde, os saques e a perda de suprimentos do Fundo Nacional de Abastecimento Médico, o custo dos medicamentos, especialmente para doenças crônicas como a diabetes, disparou, e as pessoas simplesmente podem não ter como pagar.

As pessoas foram forçadas a tomar decisões como: “Devo comprar comida ou compro minha insulina?” Eles estão passando por um enorme nível de estresse, o que também é prejudicial à sua saúde se estiverem lidando com uma doença crônica, especialmente quando você precisa administrar sua dieta e cuidar de sua família enquanto vive em um local comunitário superlotado e em geral mal atendido.

 

Tentativas de ajuda pequenas e insuficientes, mas diferenciadas

 Na tentativa de atenuar a escassez de água, conseguimos ligar alguns locais de recolha à linha de água da cidade. Intervimos em 47 locais comunitários diferentes, melhorando o acesso à água e realizando reabilitações significativas em latrinas.

 

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Em um local comunitário, predominantemente composto por famílias com pessoas com deficiência que usavam cadeiras de rodas ou muletas desde antes do conflito, a nossa equipe percebeu que havia rampas e barras de apoio nos banheiros para facilitar o acesso.

Nossa resposta de emergência de 10 semanas segue seu curso. Infelizmente, as terríveis necessidades das pessoas deslocadas internamente e das comunidades locais permanecem em grande parte sem resposta, e quase nenhuma organização humanitária assumiu o controle após o encerramento da nossa resposta de emergência em Kassala.

A assistência que as organizações prestam neste momento é como uma gota no oceano. As lacunas são tão significativas que pode parecer que essa ajuda não está fazendo nenhuma diferença. Apesar de pouca, ainda faz uma diferença importante na vida de algumas pessoas.

Embora algumas organizações forneçam assistência alimentar, as pessoas dependem dos seus vizinhos, da boa vontade das comunidades, de pessoas caridosas, de parentes e de uma cultura hospitaleira. Isto aumenta as necessidades das comunidades locais de onde provém predominantemente a assistência.

 

Conflito prolongado e realidade discordante

Uma família originária de Darfur, deslocada para Cartum, teve de enfrentar novamente o deslocamento. Desta vez, para Wad Madani, quando o conflito começou, em abril de 2023. A mãe, grávida de nove meses, deu à luz em um local comunitário. Felizmente, tanto o bebê quanto a mãe estavam seguros. No entanto, quando o conflito chegou a Wad Madani, eles tiveram que fugir para Gedaref.

“É notável como o Sudão recebe pouca atenção e como as experiências do seu povo são ocultadas do mundo.”

A família se separou para a viagem depois de fugir de Wad Madani, onde um filho de 7 anos foi submetido a cirurgias especializadas por causa de uma lesão cerebral provocada por um estilhaço. Eles acreditavam que seria mais fácil para o pai encontrar um local para continuar o tratamento do filho sozinho.

Depois de passar por momentos incertos e difíceis, a família conseguiu se reunir novamente no local comunitário em Tenedba. Esse tratamento especializado só estava disponível em Wad Madani. Mas surgiu a questão: estas instalações eram acessíveis apenas às pessoas que atravessam brutais linhas da frente e arriscaram as suas vidas para chegar a Wad Madani? MSF forneceu cuidados básicos, curativos e controle de infecções para a criança, mas não conseguimos fornecer o tratamento especializado de que ela ainda precisava.

 A natureza prolongada do sofrimento que as pessoas enfrentam atualmente é espantosa. É notável como o Sudão recebe pouca atenção e como as experiências do seu povo são ocultadas do mundo.

A situação no Sudão é largamente ignorada pelos meios de comunicação. Acredito que isto se deve principalmente ao fato de os jornalistas não poderem entrar no país e as organizações não serem suficientemente eloquentes sobre o que se passa por lá. Enfrentamos problemas de coordenação e um financiamento significativamente insuficiente.

Agora, temos uma situação em que as pessoas são deslocadas por várias vezes, e as necessidades são enormes. Outro aspecto sombrio desta situação ocorre nas zonas controladas pela RSF, onde o acesso é extremamente limitado.

Estamos diante de uma grave crise de insegurança alimentar aguda, o que constitui uma preocupação significativa para o futuro, uma vez que já estamos há quase um ano no conflito, e ainda não vemos nenhum progresso ou movimento substancial em direção a uma resolução pacífica ou ao fim da guerra.”

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