“Todos em nossa equipe entendem a dor e o esforço necessários para começar a expressar os sentimentos”

Em Histórias de MSF, a ucraniana Anastasia Nedieva fala sobre como utiliza sua experiência pessoal durante a guerra na Ucrânia para ajudar outros sobreviventes

Anastasia Nedieva, supervisora de promoção de saúde de MSF em Vinnytsia, na Ucrânia. © Florença Dozol/MSF

Anastasia Nedieva iniciou sua carreira com Médicos Sem Fronteiras (MSF) em 2015, atuando como assistente social na região de Donetsk, no leste da Ucrânia, onde MSF administrava clínicas móveis em vilarejos sem médicos ou farmácias. Em 2019, ela se mudou para Mariupol com a filha e o marido, mas foram forçados a fugir de sua casa depois que a cidade foi bombardeada pelas forças russas em 2022.

Atualmente, Anastasia atua como supervisora de promoção de saúde de MSF na cidade de Vinnytsia , onde MSF oferece atendimento a pessoas que sofrem de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) relacionado à guerra. Neste relato, ela descreve seu próprio processo de recuperação do TEPT e como ela usa suas experiências para explicar às pessoas os benefícios da terapia.

“Em 24 de fevereiro de 2022, o exército russo começou a bombardear Mariupol. Não havia como sair da cidade imediatamente sem arriscar a vida. Durante 20 dias, moramos no porão do dormitório de MSF com nossos colegas e suas famílias. Em 15 de março, finalmente conseguimos ser evacuados. Foi assim que minha família e eu chegamos a Vinnytsia, exatamente quando a organização estava se preparando para iniciar as atividades para atender às necessidades das pessoas deslocadas pelo conflito na região.

Quando saímos de Mariupol, estávamos com muita adrenalina. Não entendíamos onde estávamos ou o que estava acontecendo. Não sabíamos onde procurar abrigo ou como recomeçar nossas vidas. Não sabíamos se ficaríamos em Vinnytsia ou se teríamos que fugir novamente.

Enfrentei o medo de sair do hotel e o medo de andar pelas ruas. A primeira coisa que ouvi na rua foram sirenes, mas não eram sirenes de verdade, apenas ruídos na minha cabeça. As sirenes fantasmas são um dos sintomas do transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). Por isso, nossos psicólogos me ofereceram ajuda. O aconselhamento psicológico, bem como a sensação de estar envolvida em meu trabalho, ajudaram-me a me recuperar.

Em Vinnytsia, começamos a administrar clínicas móveis e fizemos visitas regulares a abrigos em 30 locais da região. Nessa fase da guerra, cerca de 168 mil pessoas deslocadas transitavam por esses abrigos. Em seguida, MSF abriu um centro em Vinnytsia para fornecer atendimento psicológico e médico para pessoas que sofrem de TEPT relacionado à guerra.
Hoje, meu trabalho envolve identificar pessoas com sintomas do transtorno e cadastrá-las para se consultar com psicólogos em nosso centro. No início, essa parecia ser uma tarefa extremamente difícil, pois um dos sintomas do TEPT é a relutância em lembrar ou colocar em palavras os eventos traumáticos.

É um círculo vicioso: uma pessoa que reluta em se aprofundar nas causas de seu trauma pode não procurar ajuda psicológica, mas, sem terapia, ela é forçada a reviver o trauma em sua mente repetidamente.

Estamos trabalhando em conjunto com o Centro I’Mariupol [uma organização que apoia as pessoas deslocadas na cidade], onde 3 mil pessoas deslocadas foram registradas. A maioria delas passou por cercos e bombardeios durante meses e viveu sob a ocupação [militar]. Quando as visitamos e falamos sobre os sintomas de TEPT, muitas responderam: ‘Sim, estamos assim’, e algumass até começaram a chorar. Foi quando percebemos que muitas pessoas precisavam de ajuda especializada.

Doe para MSF e nos ajude a continuar oferecendo cuidados de saúde em contextos como o da Ucrânia.

O processo de construção de confiança com os pacientes em potencial é gradual. Inicialmente, as pessoas são céticas quanto à ideia de se consultar com um psicólogo. Elas geralmente perguntam se um psicólogo pode trazer de volta sua família e seu lar. Tentamos encontrar palavras para confortá-las, mas também dizemos a elas que, embora os psicólogos não possam trazer de volta suas casas ou ajudar a desocupar Mariupol, eles podem ajudar as pessoas a lidar com essas perdas e seguir em frente com suas vidas. Às vezes, compartilho minha própria história.

Eu e minha equipe adaptamos regularmente nossa abordagem e as palavras que escolhemos. No final de cada dia, analisamos nossas experiências e os desafios que enfrentamos. Sabemos que precisamos aprimorar constantemente nossas habilidades em aconselhamento e entrevistas motivacionais.

Reunião matinal da equipe de promotores de saúde de MSF no centro de trauma em Vinnytsia. © Fanny Hostettler/MSF

Oficinas criativas com atividades de desenho, modelagem em argila e artesanato são extremamente úteis. Cerca de 40 pessoas participam de nossas oficinas semanalmente. Elas mergulham em um ambiente criativo, conversam umas com as outras e relembram um pouco do que passaram. Quando uma pessoa começa a se abrir, uma segunda pessoa pode sentir empatia por sua dor, enquanto uma terceira pode ficar entorpecida diante dessas lembranças. É assim que identificamos as pessoas com sintomas de TEPT. Após os workshops, nós as abordamos individualmente e de forma confidencial para lhes contar mais sobre nosso centro.

Nem todo mundo está ciente dos sintomas de TEPT, e muitos convivem com esses sintomas por um longo período. Com o tempo, o TEPT pode ter um grande impacto na vida cotidiana das pessoas, em suas interações com os outros e em sua condição física. Na pior das hipóteses, pode levar à depressão grave e ao suicídio. É por isso que estamos aqui. Explicamos os sintomas, descrevemos como o trauma afeta o cérebro e informamos quais terapias estão disponíveis e por que e como elas funcionam.

Se alguém perguntar como a psicoterapia pode ajudá-lo, compartilhamos histórias de pessoas que se recuperaram, como a história de uma mulher que conhecemos que sofria de tremores graves. Ela foi vítima de bombardeios na região de Kherson e viveu sob ocupação [militar] por nove meses. No início, ela relutava em falar sobre psicoterapia e se recusava a vir ao centro. Então, um dia, ela viu nosso pôster de uma garota falando sobre os sintomas de TEPT, começou a chorar e disse: ‘Essa garota sou eu’. Conseguimos que ela fosse a um de nossos psicólogos. Isso a ajudou muito e seus tremores até diminuíram.

Sei por experiência própria que o TEPT é uma ferida que deixa cicatrizes. Até mesmo falar sobre isso agora dói. Todos em nossa equipe entendem a dor e o esforço necessários para começar a expressar esses sentimentos. Mas também sabemos que é um alívio se abrir. Estou aqui desde a inauguração do centro e, até agora, conseguimos ajudar cerca de 2 mil pessoas. Ao sair do centro, você começa a perceber novamente que o sol está brilhando, que as folhas verdes são lindas e você começa a seguir em frente com sua vida.”

 

 

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