“Todos sentiram a amargura da perda na guerra do Sudão, inclusive eu”

Aisha B., promotora de saúde no campo de trânsito em Adre, conta, em Histórias de MSF, como encontrou propósito ao ajudar refugiados como ela

Aisha B. é promotora de saúde no campo de trânsito em Adre, no Chade © Ante Bussmann/MSF

“Enquanto escrevo agora, mais de 700 mil pessoas do Sudão estão no Chade em busca de refúgio — assim como eu e minha família.

A maioria de nós conseguiu levar apenas o necessário: roupas, talvez uma fotografia, algum dinheiro. A viagem foi um pesadelo. Vimos vilarejos queimados, ouvimos tiros, nos escondemos de homens armados e passamos por inúmeros postos de controle. Quando chegamos ao leste do Chade, tínhamos perdido quase tudo.

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Há mais de um ano, fugi pela fronteira com meu irmão e minha mãe. Caminhamos a maior parte dos 30 quilômetros a pé, suportando o calor intenso e o medo constante de sermos atacados ou parados. Ter minha família comigo me deu forças para continuar.

Quando finalmente chegamos ao acampamento de trânsito perto da cidade de Adre, não havia quase nada lá, apenas algumas tendas e uma vasta planície empoeirada pontilhada de arbustos. Pouco a pouco, foram construídas latrinas e estações de água, e as organizações de ajuda humanitária começaram a nos apoiar com a distribuição de alimentos. Mas, como você pode imaginar, a vida é difícil quando um número tão grande de pessoas chega repentinamente em um lugar e depende inteiramente da ajuda humanitária.

Às vezes, estar lá apenas para ouvir ajuda. Cada pessoa tem sua própria história.”

A população de Adre aumentou mais de seis vezes desde o início da guerra no Sudão. Muitos dos refugiados estavam exaustos e doentes, e alguns ficaram gravemente feridos. Equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) estiveram presentes no acampamento de trânsito, montando uma clínica para oferecer atendimentos que se tornaram vitais para os refugiados. A organização também prestou muitos outros serviços, como clínicas móveis, apoio psicológico e abastecimento de água. Foi ali que conheci as equipes de MSF.

Assista:

 

Quem sou eu nesse caos?

Deixe-me me apresentar: meu nome é Aisha B., tenho 28 anos, sou de El Geneina, Darfur Ocidental. A guerra mudou tudo. Eu tinha uma vida boa. Depois de concluir meus estudos em sociologia e desenvolvimento urbano, trabalhei para uma organização não governamental por vários anos. Agora, estou com MSF. Meu trabalho atual como promotora de saúde envolve educação em saúde e falar sobre quais serviços estão disponíveis no acampamento de trânsito em Adre.

Em seu trabalho como promotora de saúde de MSF, Aisha B. orienta mães sobre como proteger as crianças de doenças como diarreia ou malária © Ante Bussmann/MSF

Todas as manhãs, quando começo a trabalhar, muitos pacientes já estão esperando em frente à nossa clínica. Pergunto a eles quais são suas queixas e os oriento para as enfermarias adequadas. A comunicação é um grande desafio aqui, onde muitos idiomas são falados. Trabalho como elo entre as equipes médicas e os pacientes.

Quando o primeiro grande grupo de pacientes é tratado, eu passo para a enfermaria de crianças com desnutrição aguda. Lá, converso com seus familiares, geralmente mães, sobre o atendimento que está sendo feito. Explico como funciona a terapia, falo sobre certos cuidados e como evitar uma recaída. Também os oriento sobre as causas da desnutrição e como proteger as crianças de doenças como diarreia ou malária.

Às vezes, apenas estar lá para ouvir ajuda. Cada pessoa tem sua própria história. Todos sentiram a amargura da perda na guerra do Sudão, inclusive eu. Todos nós já passamos por coisas terríveis e tivemos que deixar nossas casas.

Recentemente, uma mulher chegou à clínica de MSF com seu bebê. Você pode vê-los, Manahil M. e a pequena Sabah, na foto abaixo. A mãe teve febre alta e perdeu a consciência logo após sua chegada. Precisávamos avisar com urgência alguém da família dela.

Aisha B. observa Manahil M. e a pequena Sabah; com diagnóstico de malária e desidratação grave, Manahil teve alta depois de receber tratamento e voltou para casa com a filha e o marido © Ante Bussmann/MSF

Enquanto nosso médico cuidava de Manahil, consegui ligar para seu marido usando o celular dela. Ele veio o mais rápido que pôde. Enquanto isso, um colega e eu cuidávamos de Sabah, de cinco meses, que felizmente estava bem.

O diagnóstico de Manahil foi malária e desidratação grave. Ela recebeu fluidos intravenosos e medicação contra malária. Em 20 minutos, recuperou a consciência, embora ainda estivesse muito fraca e atordoada. Seu marido segurou sua mão e cuidou de Sabah.

Tenho a sorte de fazer parte de uma grande equipe que trabalha tão duro para apoiar todas as pessoas aqui.”

Felizmente, o tratamento funcionou. À noite, Manahil estava bem o suficiente para receber alta. Fiquei tão aliviada. Teria sido devastador para o marido e para a pequena Sabah se ela não tivesse sobrevivido. É em momentos como esse que a importância da família se torna ainda mais evidente.

 

Por que ninguém está ajudando?

Esta é apenas uma das muitas famílias com as quais tenho contato diariamente. Muitas ainda não têm barraca ou abrigo adequado. Essas condições de vida partem meu coração.

A ajuda internacional não acompanha o grande fluxo de pessoas. As cestas básicas são insuficientes. Muitas crianças estão em situação grave de desnutrição e as tratamos com alimentos terapêuticos em nossas instalações.

Aisha B., promotora de saúde de MSF, orienta mãe sobre cuidados com o filho © Ante Bussmann/MSF

A situação no Sudão é ainda pior. Sinto como uma facada no coração sempre que ouço notícias de casa e penso nos meus amigos e parentes que continuam lá. Segundo a Organização das Nações Unidas, cerca de 25 milhões de pessoas no Sudão estão passando por níveis críticos de fome — metade da população do país.

Apesar dos intensos combates, MSF está fazendo todo possível para fornecer ajuda em muitas partes do Sudão. Lembro-me de como, no início da guerra, muitos feridos cruzaram a fronteira para Adre. Eles tiveram ferimentos causados por bombas ou tiros. Naquela época, MSF se instalou no centro da cidade com uma sala de cirurgia. Nossas equipes trabalharam o tempo todo, ininterruptamente, para salvar incontáveis vidas.

Embora menos pessoas feridas cheguem agora em Adre devido à mudança nas linhas de frente, os conflitos continuam. Eu me preocupo constantemente com meus parentes que ainda estão no Sudão, mas não tenho outra opção a não ser focar no meu trabalho aqui. Minhas tarefas diárias me distraem e me dão um senso de propósito. Meu trabalho proporciona uma renda que sustenta minha família, mas, mais do que isso, me permite ajudar os outros. Tenho a sorte de fazer parte de uma grande equipe que trabalha tão duro para apoiar todas as pessoas aqui.

Aisha B. (à direita) cuida da pequena Aisha enquanto a mãe da bebê, Manahil, recebe tratamento. À esquerda, Hassanic T. também profissional de MSF © Ante Bussmann/MSF

São tempos difíceis para nós. Mas ouvindo uns aos outros e cuidando uns dos outros, podemos conseguir muito. Nós, refugiados, somos como uma grande família, dando força uns aos outros.

Acredito que uma coisa nos une, não importa onde vivamos: todos nós precisamos de pessoas em nossas vidas que estejam perto de nós e em quem possamos confiar — especialmente em situações difíceis.

Não sei quem vai ler minhas palavras ou onde. No entanto, envio a você minhas mais calorosas saudações do Chade — e, do meu coração, também do Sudão.

 

Com carinho,

Aisha B.

Promotora de Saúde, Médicos Sem Fronteiras”

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