Tratamento para Chagas poderá custar US$ 84 mil nos EUA

MSF critica estratégia da empresa KaloBios voltada para o aumento do preço do medicamento benzonidazol no país

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A organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) está preocupada com o recente anúncio feito pela KaloBios referente à aquisição dos direitos do benzonidazol, medicamento utilizado por MSF para o tratamento da doença de Chagas na América Latina. A empresa anunciou sua intenção de registrar o medicamento nos Estados Unidos (EUA) para obter um voucher de avaliação prioritária (PRV, na sigla em inglês) da Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA, na sigla em inglês).

MSF utiliza o benzonidazol para tratar a doença de Chagas por toda a América Latina há muitos anos. Ainda não está claro quais serão as consequências da aquisição do medicamento pela KaloBios no acesso de pacientes na América Latina, onde MSF mantém projetos. No entanto, a intenção da KaloBios de utilizar um programa do governo norte-americano criado para incentivar a inovação médica para obter uma recompensa financeira e então aumentar o preço do medicamento enfatiza a necessidade urgente de reparo de falhas críticas no programa para doenças negligenciadas da FDA.

O programa de vouchers de avaliação prioritária da FDA foi criado em 2007 para oferecer incentivos à inovação, a fim de que fossem desenvolvidos novos medicamentos para doenças negligenciadas. Em troca do registro de um medicamento para certa doença negligenciada nos EUA, a FDA emite um voucher que agiliza o trâmite de um produto subsequente no processo regulatório, ajudando as empresas a colocarem o medicamento no mercado mais rapidamente. O voucher pode ser vendido e, de fato, isso já aconteceu e rendeu 350 milhões de dólares. Se o incentivo funcionasse adequadamente, as pessoas com doenças negligenciadas seriam beneficiadas por novos tratamentos e empreendedores inovadores seriam recompensados por seu investimento.

Na realidade, as empresas podem obter esse voucher sem ter realmente desenvolvido um novo medicamento, e sem ter de garantir que os medicamentos tenham preços acessíveis. Esse programa está sujeito a abusos e tem sido repetidas vezes trapaceado. Isso pode acontecer novamente se a KaloBios obtiver um voucher de avaliação prioritária da FDA para o benzonidazol, um antigo medicamento que MSF e outros atores estão usando como tratamento de primeira linha para a doença de Chagas.

A KaloBios não conduziu nenhuma atividade de pesquisa e desenvolvimento para a doença de Chagas, mas, ainda assim, ao registrar o produto nos EUA, a empresa pode receber um voucher de avaliação prioritária altamente lucrativo e não está sob qualquer obrigação que garanta que o medicamento tenha um preço acessível. De acordo com um arquivamento da KaloBios na Comissão de Valores Mobiliários dos EUA (U.S. Securities and Exchange Commission – SEC, na sigla em inglês), a empresa está planejando vender o benzonidazol pelos preços dos atuais medicamentos para a hepatite C, que custam, pelo menos, 84 mil dólares por curso de tratamento nos EUA. Na América Latina, o benzonidazol está disponível por cerca de 100 dólares ou menos por curso de tratamento.

Depoimento de Lucia Brum, médica e consultora em doenças emergentes da Unidade Médica Brasileira (BRAMU) de MSF

“Historicamente, a doença de Chagas é marcada pela omissão da indústria farmacêutica e da vontade política de governos que promovam políticas públicas inclusivas de acesso ao diagnóstico e tratamento na saúde primária. Estima-se que, hoje, mais de 6 milhões de pessoas estejam submetidas a essa invisibilidade, com cerca de 12 mil mortes sendo registradas por ano. Observa-se ainda um enorme descaso com relação à produção de medicamento benzonidazol, desde o abandono da produção por falta de interesse econômico da farmacêutica Roche à ruptura de estoque mundial nas mãos do brasileiro Lafepe, que chegou a afetar inclusive os projetos de MSF. Os constantes problemas de produção e abastecimento despertaram o interesse de do laboratório argentino ELEA, que passou a comercializar o produto a um preço até três vezes maior do que o praticado anteriormente, o que já teve um impacto significativo. Como se não bastasse essa negligência histórica, nos deparamos agora com a notícia do interesse pela produção do medicamento por parte do empresário Martin Shkreli, que, por meio do uso abusivo de um programa norte-americano, teria a intenção de cobrar inacreditáveis US$ 84 mil pelo tratamento por paciente – montante 1.787 vezes maior do que o atualmente praticado pelo laboratório ELEA. Como é que se espera que as comunidades vulneráveis afetadas pela doença arquem com esse valor? Isso é completamente absurdo.”

Depoimento de Judit Rius Sanjuan, consultora de políticas legais da Campanha de Acesso a Medicamentos

“Comprar os direitos de um medicamento de 40 anos para obter uma recompensa lucrativa, criada para promover a pesquisa e o desenvolvimento biomédico, e depois aumentar o preço desse medicamento, não é inovação. É um abuso de um programa do governo norte-americano destinado a levar medicamentos às pessoas negligenciadas que deles tanto precisam. O voucher de avaliação prioritária da FDA deveria recompensar as verdadeiras inovações e garantir que os resultados dessas inovações estejam disponíveis e sejam acessíveis a pacientes e provedores de tratamento. O Congresso pode responder a essas falhas críticas, e deve fazer isso urgentemente. O que está acontecendo com o benzonidazol, em que o governo norte-americano poderia recompensar uma empresa por registrar um medicamento de 40 anos e permitir o aumento do preço de menos de 100 dólares por frasco para mais de 84 mil dólares por curso de tratamento, é inaceitável, causa mais sofrimento às pessoas que já sofrem de uma doença negligenciada fatal e ridiculariza a intenção original dessa legislação.”

No dia 17 de novembro de 2015, MSF, a Associação Americana de Cirurgia Torácica, a Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi), a Aliança Global para o Desenvolvimento de Medicamentos contra a Tuberculose, o Centro IDSA para a Política Global de Saúde, o Instituto Sabin e o Grupo de Ação e Tratamento enviaram uma carta para as lideranças do Comitê do Senado dos EUA sobre Saúde, Educação, Trabalho e Pensões (Help, na sigla em inglês) pedindo alterações para corrigir falhas críticas no programa da FDA de voucher de avaliação prioritária para doenças negligenciadas.

MSF trata pacientes da doença de Chagas desde 1999 na Bolívia, na Guatemala, em Honduras, no México, no Brasil e na Nicarágua.
 

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