Três questões para entender a crise na República Democrática do Congo

Milhares de pessoas tiveram de deixar suas casas nas províncias de Kivu do Sul e Kivu do Norte por causa da violência entre grupos armados.

Acampamento de pessoas deslocadas em Shabindu, em Kivu do Norte, República Democrática do Congo. © Joelle Kayembe/MSF

Marie Brun é coordenadora de emergência de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Goma, na província de Kivu do Norte, na República Democrática do Congo. Ela faz uma atualização sobre a situação diante dos intensos conflitos que ocorrem desde o início do ano entre vários grupos armados, incluindo o M23, e as forças armadas congolesas. A profissional também relata as consequências para os civis, que são mais uma vez forçados a suportar a violência.

A insegurança parece estar afetando cada vez mais as pessoas já deslocadas nas províncias de Kivu do Sul e Kivu do Norte, especialmente em torno de Goma. Qual é a situação?

Nos últimos dois anos, temos assistido a movimentos regulares de pessoas que fogem dos conflitos na província do Kivu do Norte e, mais recentemente, no Kivu do Sul. As pessoas e as famílias deslocadas procuraram refúgio sobretudo em acampamentos rudimentares nos arredores de Goma, capital do Kivu do Norte.

Nas últimas semanas, Goma foi gradualmente cercada por várias frentes de batalha, com entre 600 mil e 1 milhão de pessoas deslocadas tendo que se aglomerar junto com os 2 milhões de residentes da cidade. A concentração de homens armados dentro e em redor dos acampamentos densamente povoados e a crescente aproximação das forças militares com as pessoas deslocadas levaram a um aumento geral do nível de violência. Os civis ficam em meio ao fogo cruzado entre os diferentes grupos armados e são feridos, mortos ou se tornam vítimas de crimes e, em particular, de violência sexual.

Em Goma, as pessoas deslocadas se encontram em uma situação semelhante àquela de onde fugiram inicialmente. Elas estão em completa insegurança e não têm saída. Os acampamentos para pessoas deslocadas devem ser respeitados por todas as partes no conflito e os conflitos nas proximidades precisam cessar.

• Saiba mais: seis histórias de pessoas que, para sobreviver à violência, deixaram suas casas para trás, na República Democrática do Congo

Esta insegurança é agravada por condições de vida extremamente precárias. As pessoas deslocadas vivem em acampamentos densamente povoados, em condições sanitárias deploráveis, sem acesso adequado a serviços de água e saneamento, em abrigos feitos de lonas plásticas, em terrenos irregulares feitos de rocha vulcânica. O acesso à água potável e aos alimentos é muito difícil e imprevisível.

Meu cunhado foi morto por uma bomba”
– David Simwerayi, de Masisi.

David Simwerayi, de Masisi, em frente ao seu abrigo, no acampamento para pessoas deslocadas de Shabindu, em Kivu do Norte. O abrigo foi reconstruído após o anterior ter sido destruído por um explosivo. © Joelle Kayembe/MSF

“A bomba caiu em 6 de abril de 2024, por volta das 18h30. Naquela noite, eu estava voltando da igreja para casa e meus filhos estavam brincando ao lado de nosso abrigo. Meu irmão mais novo, que estava dormindo no abrigo, ficou levemente ferido, mas meu cunhado foi morto pela bomba de uma forma horrível. Ele foi cortado em dois. Várias pessoas no bairro ficaram feridas desde esses trágicos acontecimentos. Não recebemos nenhuma assistência além de MSF, que nos deu lonas, arame e pregos para reconstruir nossos abrigos”.

Qual é o impacto desta violência sobre os civis?

De acordo com o que observamos, o fogo de artilharia pesada nos acampamentos ao redor de Goma causou 23 mortes e 52 feridos desde fevereiro de 2024. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), na manhã de 3 de maio, pelo menos 18 civis morreram, a maioria deles mulheres e crianças, e outros 32 ficaram feridos em bombardeios, afetando vários locais onde pessoas deslocadas internamente se abrigavam.

Desde o início do ano, temos observado fogo cruzado e explosões de granadas dentro dos acampamentos, tanto de dia quanto à noite. Registramos 24 incidentes envolvendo bombardeios dentro ou ao redor dos acampamentos onde trabalhamos, e as equipes de MSF receberam 101 vítimas que não corriam risco de morte no hospital Kyeshero, transferidas pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICVP), que trata os pacientes mais graves feridos por armas. Também estamos preocupados com o fato de os pacientes atrasarem a procura de cuidados por medo da falta de segurança.

Nos acampamentos de Shabindu, Rusayo e Elohim, tratamos mais de 1.700 novos casos de violência sexual em abril, 70% dos quais foram perpetrados por homens armados. MSF pode oferecer atendimento médico e psicológico às sobreviventes, mas há opções muito limitadas de encaminhamento para apoio jurídico, abrigos seguros e outros serviços de proteção. Embora a maioria das sobreviventes de violência sexual tratadas pelas nossas equipes relatem terem sido atacadas enquanto recolhiam lenha, também observamos um número crescente de agressões dentro dos acampamentos. Casos de estupro coletivo também foram relatados.

• Leia também: MSF atende número alarmante de sobreviventes de violência sexual em campos de pessoas deslocadas na República Democrática do Congo

Os confrontos também foram retomados em Kibirizi, uma cidade de acolhimento e trânsito para milhares de pessoas deslocadas, localizada no cruzamento de vários eixos estratégicos em Kivu do Norte. Em maio, conflitos violentos eclodiram em zonas povoadas, tanto nas cidades como perto dos acampamentos. Infraestruturas e recursos vitais foram destruídos, e um grande êxodo de pessoas novamente deslocadas pelos confrontos se formou.

O número de casos de violência sexual também aumentou. Houve um aumento de cinco vezes no número de sobreviventes de violência sexual tratadas em unidades de saúde apoiadas por MSF em Kibirizi e mais ao sul, na zona de saúde de Bambo.

Com a intensificação das hostilidades em uma nova linha da frente desde fevereiro, a troca de fogo e artilharia também afeta os civis que vivem dentro e ao redor da cidade de Minova, no Kivu do Sul, onde quase 200 mil pessoas se refugiaram este ano.

A bomba caiu bem na frente do meu abrigo”
– Rusi, de Masisi.

Rusi, de Masisi, em seu abrigo reconstruído após o bombardeio no acampamento de Shabindu para pessoas deslocadas ocorrido em 6 de abril de 2024. © Joelle Kayembe/MSF

“A bomba caiu bem na frente do meu abrigo por volta das 18h e cavou um grande buraco. Eu não entendi o que tinha acontecido. Só me lembro de estar sentada em frente ao meu abrigo quando ouvi um barulho alto. Desmaiei e fui levada ao hospital. Desde então, tomo remédios para acalmar a pressão, pois qualquer barulho me traumatiza.”

Como MSF continua a trabalhar?

No Kivu do Norte e do Sul, as nossas equipes trabalham em um contexto de segurança volátil, com dificuldades de circulação e de entrega de ajuda humanitária, e acesso incerto aos centros de saúde que apoiamos. Apesar da natureza médica e humanitária da nossa resposta a esta crise, a equipe de MSF não foi poupada de atos de intimidação por parte de homens armados.

MSF suspendeu suas atividades em diversas ocasiões, principalmente por causa dos confrontos perto dos acampamentos em Goma e nos arredores de Minova. A estrada que liga Kivu do Sul a Goma está atualmente bloqueada e os abastecimentos só podem ser entregues de barco a partir do Lago Kivu, ou de moto.

Os confrontos também impedem que os fornecimentos de Goma cheguem às zonas periféricas. No território de Masisi, onde MSF apoia principalmente os hospitais gerais Masisi e Mweso, as equipes médicas têm recebido dezenas de feridos de guerra desde o início do ano, mas há meses o acesso rodoviário tem sido extremamente difícil e arriscado. Isto tem dificultado as operações humanitárias, privando as pessoas de ajuda humanitária vital.

Como MSF, lembramos a todas as partes em conflito que, em tempos de conflito, elas são obrigadas a respeitar o direito humanitário internacional e todas as proteções concedidas aos civis, às instalações de saúde, aos pacientes e à equipe médica.

No centro de saúde de Kishinji, apoiado por MSF, mulheres deslocadas participam de uma sessão sobre saúde. © Hugh Cunningham
Compartilhar