Ucrânia: MSF atua em meio à destruição causada pela guerra

Christopher Stokes, coordenador-geral de MSF na Ucrânia, compartilha detalhes da logística montada para fornecer assistência médica e humanitária em meio ao conflito.

Médicos e enfermeiras a bordo do trem médico de MSF discutem a condição de um paciente durante a viagem de Pokrovsk, no leste da Ucrânia, maio de 2022 © Andrii Ovod

Em 24 fevereiro de 2022, despertamos durante a noite com o estrondo de explosões distantes, o som de caças lançando mísseis sobre Kiev e a notícia surpreendente de que a Rússia estava invadindo a Ucrânia.

Nenhum de nós sabia o que esperar. Eu havia chegado há quatro dias para tentar estabelecer uma rede de contatos que pudesse nos ajudar, caso houvesse uma grande escalada no conflito. Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalhou pela primeira vez na Ucrânia em 1999, e vinha respondendo às necessidades humanitárias geradas pelos confrontos no Leste do país desde 2014, mas, em realidade, estávamos despreparados.

Para muitas agências humanitárias, e, de fato, para muitos ucranianos, a negação que precedeu a invasão deu lugar à descrença e, para os civis comuns, uma sensação de destruição iminente misturada com raiva. Muitas ONGs simplesmente deixaram o país, exacerbando a demanda subsequente por uma ampliação massiva da resposta humanitária.

Naqueles primeiros dias, entre 10 e 15 milhões de pessoas fugiram de suas casas. Surpreendentemente, no entanto, não testemunhamos pânico ou a ocorrência de saques. Não havia voos para fora do país, porque todos os aeroportos, civis e militares, haviam sido atingidos por mísseis russos.

Esta não era a primeira vez que eu trabalhava com MSF em uma zona de conflito, nem foi a primeira vez que testemunhei o início de uma grande guerra. No entanto, as invasões interestatais são raras (por exemplo, as invasões dos EUA no Afeganistão, em 2001, e no Iraque, em 2003) e a fase intensa, embora sangrenta, geralmente dura pouco. A situação na Ucrânia não segue esse padrão de forma alguma.

Mudamos de Kyiv para Lviv e começamos a redefinir e reconstruir nossa resposta médica dali. Poucos profissionais internacionais se sentiam seguros o suficiente para ficar, então começamos nossas atividades contando principalmente com nossos colegas ucranianos, que aceitaram o desafio, embora todos estivessem deslocados internamente e precisassem encontrar abrigo para suas famílias em partes mais seguras do país.

A próxima pergunta era: qual seria o curso de ação mais efetivo em meio a uma guerra de mudanças tão rápidas? Onde uma ONG médico-humanitária poderia fazer a maior diferença?

Logo ficou claro que os civis não seriam poupados. Famílias deixando Kyiv foram mortas nas estradas que levam ao Leste e ao Sul, quando tanques abriram fogo sem aviso prévio. Assim, criamos programas para ajudar os hospitais a lidar com fluxos em massa de pacientes e casos de trauma relacionados com a guerra, uma área altamente especializada, diferente de traumas “comuns”, como acidentes de trânsito.

Também fizemos pedidos de emergência para reabastecer os hospitais com suprimentos, para que eles pudessem lidar com o aumento da carga de trabalho relacionada aos casos de trauma – uma abordagem padrão em tempos de guerra em um país de renda média com uma sólida infraestrutura de saúde especializada. A proposta era apoiar um sistema existente a lidar com uma carga de trabalho extraordinária. No entanto, a Ucrânia estava em guerra desde 2014, embora antes mais limitada geograficamente. Estava melhor preparada do que a maioria dos sistemas de saúde estariam. Sim, alguns médicos e enfermeiras locais partiram com suas famílias, mas a maioria ficou.

A criação de um trem-hospital

Em meados de março, decidimos tentar algo novo, na medida em que algumas lacunas começaram a se tornar perceptíveis no serviço de saúde. Uma coisa estava clara: as ferrovias ainda funcionavam e continuavam sendo um importante meio de transporte. Muitas pessoas, incluindo os feridos e pessoas apresentando outras vulnerabilidades, estavam viajando de trem, geralmente para o Oeste, longe das regiões Leste e do centro, fortemente bombardeadas. No entanto, as regiões e seus hospitais não estavam acostumados com essas referências de longa distância.

Tarde da noite em Lviv, em uma reunião com a companhia ferroviária nacional ucraniana, Ukrzaliznytsia, propus o uso de trens “medicalizados”, modificados para evacuar pacientes para o Oeste. Eles abraçaram a ideia de imediato, lembrando que algo semelhante havia sido feito durante a Segunda Guerra Mundial.

Eles começaram a desmontar os vagões no depósito enquanto nós enviávamos equipamentos médicos e técnicos para prepará-los para atender cuidados intensivos, complementados com concentradores de oxigênio e geração de energia elétrica autônoma. Não tínhamos ideia se o projeto funcionaria para além de algumas viagens, se muito. Até o final de 2022, cerca de 2.500 pacientes haviam sido transportados com segurança por todo o país em 80 viagens, muitas vezes realizadas à noite, com percursos com duração de 24 horas ou mais.

A guerra também impactou os serviços de ambulância, na medida em que as tripulações foram feridas ou mortas e seus veículos destruídos (particularmente em Luhansk e Donetsk), enquanto o número de pacientes feridos pela guerra continuou aumentando. Como resultado, o transporte de emergência feito por ambulâncias se tornou um componente central de nossa resposta médica nas regiões mais afetadas pela guerra no Leste da Ucrânia, com entre 50 e 100 referências sendo feitas por semana. Normalmente, encaminhávamos pacientes feridos de guerra de hospitais sobrecarregados do Ministério da Saúde próximo da linha de frente de batalha para a relativa segurança de Dnipro, onde poderiam receber os cuidados de que precisavam.

Além disso, administramos clínicas móveis em Kherson, Kharkiv, Chernihiv, Kyiv e Mykolaiv para ajudar as pessoas que ficaram sem acesso a cuidados de saúde durante a ocupação russa. Na medida em que vilarejos e cidades foram sendo recuperados pelas forças ucranianas, descobrimos que a maioria da população sênior que havia optado por ficar para trás ou não conseguiram fugir a tempo não tinha tido acesso a cuidados ou aos medicamentos vitais prescritos antes da guerra para controlar suas condições crônicas.

Somente em Kherson, nossas clínicas móveis cobriram mais de 160 vilarejos e cidades, oferecendo assistência médica e de saúde mental. Muitas vezes, as pessoas tinham sobrevivido, mas seus vilarejos e centros de saúde haviam sido destruídos por bombas ou ataques aéreos, ou mesmo saqueados por soldados russos em movimento.

A extensão da destruição tem que ser vista para ser devidamente entendida. Ela se estende ao longo de uma linha de frente de batalha de 1 mil quilômetros e se aprofunda em dezenas de quilômetros em ambos os lados. Nem um único vilarejo foi poupado. Serão necessárias potencialmente décadas para reconstruir o país. Famílias que evacuaram me disseram que talvez nunca mais retornem, na medida em que as pessoas que ficaram no país ainda vivem em prédios destruídos com poucos cuidados médicos que sejam mais do que rápidas visitas.

É importante ressaltar que a maior parte da ajuda aqui e em todo o país é provida pelas autoridades nacionais, apoiadas por ativistas da sociedade civil dinâmicos, que se organizaram por conta própria desde o primeiro dia. Eles vão aonde nenhuma organização internacional se atreve a ir, às vezes enfrentando grande custo pessoal.

Enquanto isso, apesar das longas negociações, Moscou não deu permissão para que MSF trabalhasse do outro lado da linha de frente da batalha, em regiões da Ucrânia atualmente sob controle russo. Isso é lamentável, já que as situações com as quais nos deparamos em áreas anteriormente sob controle russo nos levam a crer que o acesso humanitário ali seja uma prioridade. Os ucranianos com os quais estivemos em contato em Mariupol, Zaporizhzhya e Kherson confirmam a dimensão das necessidades e pedem ajuda.

Só nos resta esperar que isso mude, na medida em que não há nada que sinalize um fim próximo para a guerra, e as pessoas continuam sofrendo com o estresse constante e o perigo de ataques diários por drones e mísseis.

 

Compartilhar