Um café com canela em frente aos muchachos

Um relato sobre a violência cotidiana em El Salvador

Um café com canela em frente aos muchachos

(os nomes das pessoas e dos lugares foram alterados por questões de segurança)

El Salvador, América Central.
São 8h30 da manhã do dia 12 de julho de 2018.

Las Guirnaldas, uma das comunidades mais populosas de Soyapango, é também um dos lugares mais perigosos do município pela forte presença da gangue Mara Salvatrucha 13 (MS13), a maior e mais organizada de El Salvador. Com os muchachos* não se brinca.

Acabamos de chegar à comunidade para fazer um tour e duas visitas domiciliares. Parece ser um dia normal de trabalho, o céu está completamente azul e o dia está frio. As pessoas andam normalmente pelo parque.

Don Álvaro, um dos líderes comunitários, nos leva até o pátio da sua casa, que fica em frente ao parque, e nos convida para tomar um café. Ele diz que mói o próprio café porque o que é vendido nos supermercados lhe causa desconforto no estômago. Niña** Julita, esposa de Don Álvaro, prepara uma xícara desse café moído em casa. Ele é puro com uma mistura de canela que tem um sabor especial.

Beber uma xícara de café é um ritual obrigatório entre salvadorenhos. Rejeitá-lo pode ser considerado falta de consideração e respeito.

BRINCANDO DE GATO E RATO

São 8h50 da manhã e as pessoas continuam caminhando normalmente pelo parque. Nada parece assustá-las, tudo está calmo. As mulheres andam com seus filhos nos braços, casais estão de mãos dadas e pessoas passam sozinhas.

No fundo do parque está uma pequena floresta que é o pulmão de Guirnaldas (uma das poucas áreas verdes da densamente povoada Soyapango). Alguém poderia respirar “paz” nesse lugar. Estamos bebendo café com Don Álvaro e falamos do que pensamos em fazer nos próximos meses.

De repente, aparecem seis rapazes a apenas 20 metros de nós, visivelmente armados sob suas camisas folgadas, ao estilo Angelino (de Los Angeles). Eles estão agitados, parecem enlouquecidos, em alerta o tempo todo, indo e vindo com seus fones de ouvido e telefones nas mãos, avisando que “los perros” (os cães) estão na área. Correm de um lado para o outro e a comunicação telefônica entre eles não para.

Don Álvaro os olha com discrição, mas continua a beber o café como se nada estivesse acontecendo. Como ele e a esposa não parecem assustados, nós também ficamos calmos e continuamos a tomar nossos cafés. Nós os vemos passar, eles nos olham, mas ninguém no parque parece sentir medo, apesar de tomarem suas precauções. Isso é rotina para quem convive com pessoas que são perseguidas pela polícia.

A violência como algo natural

Conviver com os muchachos é fazê-lo sob a sombra da morte. Ver, ouvir e calar são seus lemas e as pessoas nesse país entendem a profunda mensagem dessas três palavras simples. Sim, três palavras simples.

Ninguém se surpreende com as ações dos muchachos, mas existe medo entre os moradores dessa comunidade. Mesmo vendo-os sempre correr por ruas estreitas e passagens cheias de obstáculos, dentro do possível as pessoas se relacionam umas com as outras. Elas caminham até a escola, vão ao mercado e andam para pegar o ônibus que as leva até o trabalho.

Essas pessoas aprenderam a viver com um dos grupos mais violentos da região. Para ignorar suas ações, aprenderam a naturalizar a violência. É um mecanismo de defesa. Mas até onde essa dessensibilização frente à dor e ao medo é resultado de autoproteção mental?

O relógio marca 9h30 da manhã. Os muchachos continuam agitados. Eles correm de um lado para outro à nossa frente, mas riem como se estivessem zombando de algo ou de alguém. A comunicação entre eles não para, o telefone é sua ferramenta de sobrevivência. Continuamos a conversar com o líder sobre as atividades planejadas. Don Álvaro não demonstra surpresa ou medo. Ele entende que, se não os prejudicarmos, eles nada farão, mesmo que estejam a apenas três metros de distância de nós. 

Às 10h da manhã o café termina. É hora de ir. Nos despedimos de Don Álvaro e de sua esposa e continuamos nosso dia de trabalho.

Nas duas últimas áreas da comunidade, localizadas mais abaixo, esperamos um transporte comunitário que nos levará para visitar dois pacientes. Quem mora por ali diz que é a parte mais “quente” da comunidade. Quase ninguém das primeiras áreas quer ir até lá por medo de serem assediados pelos muchachos.

Caminhando pela comunidade

“Chegou o juramento! Chegou o juramento” (gíria para presença da polícia ou de estranhos), dizem os muchachos ao telefone, agitados.

Neste dia decidimos visitar as duas últimas áreas, onde não íamos desde que começamos o projeto, três meses atrás. Em cada lugar por onde passamos encontramos algo novo: pessoas, lugares, coisas, evidências. Andamos pela rua principal, como fazemos habitualmente. Os moradores passam todo o tempo fechados em suas casas, com o medo latente de que os muchachos cheguem correndo pedindo para escondê-los da polícia. Recusar-se a fazê-lo pode significar a morte ou ser obrigado a deixar sua casa para o resto da vida (e é bem caro ter casa própria nesse país).

De tanto caminhar pelas ruas principais, reconhecemos os rostos dos muchachos. Eles também nos reconhecem, muito mais facilmente do que nós a eles. Os muchachos controlam o território milimetricamente, 365 dias por ano, 24 horas por dia. Nós nos cumprimentamos, às vezes de perto e com apertos de mão, outras vezes apenas acenando do outro lado da rua.

Aqui embaixo os muchachos também estão agitados, em estado de alerta, com telefone e fones de ouvido, sempre comunicando.

É meio-dia e já fizemos as duas visitas domiciliares aos pacientes que estavam programadas. É curioso como cada área dessa comunidade tem o próprio microcontexto no que diz respeito à segurança. Nos lugares por onde passamos agora, podemos vê-los em todos os cantos, diferente da área de cima, onde não os localizamos com tanta facilidade.

Continuamos caminhando entre passagens e barracas improvisadas, que funcionam como lanchonetes (tortillerías). De longe, vemos um muchacho vigiando a área para que a polícia não os surpreenda. Ele parece ter 1,60 m de altura, é magro, tem pele escura e não aparenta mais de 19 anos. Sua cabeça foi raspada dos dois lados da cabeça ele tem dois brincos de prata em forma de cruz pendurados nas orelhas, usa uma camisa preta solta, short bege e chinelos pretos. Tenho a sensação de que ele vai nos mandar parar.

Passamos na frente dele e o cumprimentamos. Ele nos olha e não diz nada. De repente, ouço uma voz nas minhas costas, a 15 metros de distância: Ei, chele*** Venha cá! (É uma ordem) Ele me chama com uma voz firme, mas com respeito, enquanto permanece sentado, com relativa calma e olhando para todos os lados, sem fazer movimentos bruscos com a cabeça.

Eu me aproximo e ele me pergunta o que fazemos e quem somos (nunca vimos esse muchacho).

Falo com ele sobre Médicos Sem Fronteiras, que atuamos em mais de 70 países do mundo, que somos uma instituição que agora trabalha na comunidade dele. Falo sobre nossos princípios e dou ênfase a não termos nenhuma ligação com instituições do governo, policiais ou militares (é importante mencionar isso para garantir nossa segurança).

Na conversa, deixamos claro que ele, seus companheiros e suas famílias podem receber cuidados médicos quando precisarem, que tudo é gratuito e completamente confidencial.

Enquanto eu dava a ele todas as informações necessárias, ele me examinava da cabeça aos pés, lia meu cartão de identificação de 15×10 cm, bem visível sobre meu peito (é grande, para melhor identificação).

“Está bem, chele, pode ir! Não foi nada. Pode ir! Eu só queria saber isso. Vocês podem fazer seu trabalho aqui, desde que façam o que dizem que fazem”, disse.

Continuamos andando para cima, em direção ao parque principal onde começamos o dia, até encontrarmos o motorista do transporte que veio nos pegar.

Meu nome é Santiago, eu trabalho como psicólogo social, tenho 32 anos e sou um dos membros da equipe da comunidade “Urbanización Las Guirnaldas”. MSF retomou o trabalho em El Salvador, especificamente nas áreas de San Salvador e Soyapango, onde a população tem dificuldade de acesso a serviços de saúde por causa das barreiras estabelecidas pela violência e onde as necessidades de saúde mental são urgentes e derivadas dessa mesma violência.

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