Uma nova abordagem para tratar a violência

Metodologia da Unidade Médica Brasileira sugere estratégias para responder às necessidades de vítimas crônicas de abusos

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Desde junho de 2014, a Unidade Médica Brasileira (BRAMU) presta consultoria a projetos de MSF localizados em países da América Latina onde a violência é protagonista. O objetivo é sugerir abordagens efetivas para o tratamento de vítimas desses contextos, incorporando o componente de atendimento à saúde mental aos cuidados médicos oferecidos em projetos da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF). E não se trata, aqui, da violência categorizada como conflito armado internacional ou não internacional; trata-se de um algoz multifacetado e enraizado no dia a dia de comunidades nas quais a violência doméstica e sexual se agrega ao crime organizado e à criminalidade de rua, entre tantas outras. Essa violência está sendo categorizada pela equipe de consultores da BRAMU como “Outras Situações de Violência” (OSV). E como incorporar essa assistência ao escopo de MSF? “É preciso adaptação e flexibilidade. Estamos falando de situações crônicas, nas quais sabemos que aquela pessoa que sofreu violência hoje pode vir a sofrer com a mesma situação amanhã”, conta Jean-François Veran, antropólogo da BRAMU.

Em muitos desses contextos, a violência se torna invisível por questões políticas e culturais ou de segurança da própria vítima. A partir dessa premissa, a BRAMU desenvolveu uma metodologia que envolve a aplicação de uma pesquisa de vitimização para identificar a forma de organização daquela sociedade, elencar como se dá a violência ali e estabelecer a melhor maneira de apresentar os cuidados para que as vítimas se identifiquem e se sintam motivadas a buscar os serviços. A partir do resultado da pesquisa, que é realizada de forma totalmente aleatória, são sugeridas abordagens que integram cuidados de saúde médica e cuidados de saúde mental. “A inovação está na implementação de uma estratégia comunitária que aposta na construção de redes densas que se apropriem dos protocolos de atendimento e rotas de atenção existentes para a oferta dos cuidados”, explica Jean-François. Segundo ele, dessa forma, as redes ficam fortalecidas e podem permanecer atuantes naqueles contextos para beneficiar a população, independentemente da presença de MSF.

Nos meses de fevereiro e março, a metodologia foi aplicada em sua fase preliminar na cidade de Acapulco, na Colômbia, e em um projeto de MSF que acompanha a rota do trem por meio do qual imigrantes da América Central buscam chegar aos Estados Unidos, no México. A grande dificuldade do atendimento às vítimas de violência no projeto com os imigrantes, especificamente, segundo Jean-François, é o fato de que não é possível aprofundar um trabalho de saúde mental que fragilizaria a resiliência daquelas pessoas, que se preparam emocionalmente para suportar uma enorme carga de violência para atingir seu objetivo, que é chegar ao destino final. “O trabalho psicológico da busca por um fator determinante daquele trauma, o início do trabalho de reconhecimento da violência vivida, tudo isso, ali, é difícil de implementar. Buscamos, então, outras formas de acompanhamento daquelas pessoas, que estão de passagem, e elas sabem que estarão sujeitas a muito sofrimento. Muitas até já iniciam a jornada pré-dispostas a isso, de certa forma”, conta.

Em abril e maio, o antropólogo esteve novamente na Colômbia, desta vez nas cidades de Tumaco e Buenaventura. Em Tumaco, a violência está em níveis tão elevados que os próprios líderes comunitários desaconselharam a entrada da equipe psicossocial em determinadas regiões para fazer a cartografia social e aplicar a pesquisa. Segundo eles, as pessoas não falariam sobre a violência vivida. O cenário, no final das contas, foi bastante diferente do esperado: “As pessoas queriam falar, e assim o fizeram. Entramos em casas em bairros controlados pela guerrilha, e o resultado foi ótimo”, conta o antropólogo. Em 15 dias, a equipe de psicólogos aplicou a pesquisa de vitimização em 542 domicílios e teve de fazer 48 referências de emergência ao se depararem com cenários como o de um menino que tinha uma bala alojada em seu quadril, ou de uma senhora que, por conta da explosão de uma bomba nas proximidades de sua casa, apresentava sangramento nos ouvidos.

Em Buenaventura, a equipe precisou se adaptar às restrições que o contexto de violência impõe diariamente à população: uma espécie de “toque de recolher” velado entre gangues limita fortemente a circulação de automóveis, mesmo ambulâncias, em determinados bairros. Isso, associado à inexistência de estradas ou mesmo calçadas em certas regiões, dificulta imensamente o acesso às pessoas e, segundo Jean-François, justifica uma intervenção por meio de um call center, que está sendo construído desde o início de maio, para oferecer atendimento telefônico às vítimas da violência.

Para o primeiro semestre de 2015, já está prevista uma nova visita ao projeto de imigrantes no México, e a intenção é expandir a metodologia para projetos localizados também em outros continentes.
 

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