Violência em Cabo Delgado continua a deslocar e a traumatizar milhares de famílias

Somente em 2024, mais de 80 mil pessoas foram forçadas a fugir após ataques de grupos armados.

Ernestina Jeremias, deslocada de sua cidade por causa da violência. ©MSF/Martim Gray Pereira

Seis anos após o início do violento conflito no norte de Moçambique, as pessoas em Cabo Delgado ainda vivem com medo. Só em 2024, mais de 80 mil pessoas foram forçadas a fugir após ataques de grupos armados*. As famílias deslocadas precisam urgentemente de alimentos, abrigo, itens de primeira necessidade, serviços médicos e cuidados de saúde mental.

 “Muitas vezes, as pessoas deslocadas ficam gravemente traumatizadas pela violência”, diz Esperança Chinhanja, psicóloga da Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Macomia, um dos distritos afetados de Cabo Delgado. “Algumas pessoas sentem ansiedade, têm ataques de pânico, insônia e tendem a ter um comportamento de isolamento. Algumas contam que perderam o sentido da vida e mencionam pensamentos suicidas.”

Esperança Chinhanja, psicóloga de MSF. ©MSF/Martim Gray Pereira

Desde 2017, famílias foram deslocadas diversas vezes. A maioria sofreu ou testemunhou violência extrema, incluindo assassinatos, violência sexual, sequestros, extorsão e viram seus vilarejos queimados. Muitas testemunharam familiares e vizinhos serem assassinados, decapitados ou baleados. Algumas pessoas perderam toda a família.

A violência não diminuiu, e as pessoas continuam a fugir repetidamente. Em janeiro de 2024, cerca de 76 mil pessoas que tinham sido deslocadas nos últimos anos se encontravam em Macomia. Em fevereiro, outras 3.600 pessoas foram deslocadas depois de múltiplos ataques no distrito. As suas histórias são aterradoras.

 

À noite, muitas pessoas não conseguem dormir porque ainda têm medo.”

Joaquim**, deslocado pelos conflitos em Cabo Delgado.

 

Joaquim, de 42 anos de idade, está deslocado desde 2022, e é agora responsável pelo registo de novas pessoas que chegam a um acampamento para famílias deslocadas em Macomia. Ele regista os nomes de todos os recém-chegados e traz consigo suas histórias, experiências, necessidades e frustrações.

“À noite, muitas pessoas não conseguem dormir porque ainda têm medo”, relata Joaquim. “Muitas preferem ficar acordadas para garantir que está tudo bem e que nada de mal vai acontecer”, conta ele, que também destaca que a alimentação é a necessidade mais urgente das famílias deslocadas.

 

À noite, com fome e assombrado pelas memórias dos ataques, não consigo dormir.”

Amade**, deslocado pelos conflitos em Cabo Delgado.

 

Amade, um agricultor de 60 anos de idade, foi forçado a fugir da sua aldeia em Pangane em fevereiro de 2024. Atualmente, ele está em um acampamento na cidade de Macomia, sede do distrito com o mesmo nome, a cerca de 45 quilômetros de seu vilarejo. Ao visitar uma clínica de MSF, Amade compartilhou parte de sua história: “Quando ouvimos os tiros disparados, começamos a correr. Esta foi a quarta vez que fugimos de ataques na minha aldeia desde 2020”.

“Não temos comida e dependemos da generosidade de outras pessoas para comer. Perdi tanto peso que nem reconheço meu corpo – as minhas calças caem pelas pernas porque deixaram de me servir. À noite, com fome e assombrado pelas memórias dos ataques, não consigo dormir”, contou Amade.

 

Os ataques destruíram tudo o que tínhamos, incluindo as nossas vidas.”

– Ernestina Jeremias, deslocada pelos conflitos em Cabo Delgado.

 

Assim como Amade, Ernestina Jeremias, uma parteira de 32 anos, também foi deslocada de Chai em fevereiro, e atualmente está na cidade de Macomia, a cerca de 40 quilômetros da sua aldeia. “Os ataques destruíram tudo o que tínhamos, incluindo as nossas vidas”, desabafou ela.

“Esta é a terceira vez que fujo de Chai. Os últimos ataques foram os mais brutais, porque aconteceram repetidamente durante duas semanas. Estou em um centro de deslocados desde que cheguei a Macomia. Aqui, estou dando apoio às mulheres grávidas da minha comunidade que também fugiram dos ataques, e encaminho os casos mais graves para as clínicas de MSF. Isso é o que me faz continuar em frente.” disse Ernestina.

Atija com um de seus filhos. ©MSF/Martim Gray Pereira

Atija, de 28 anos, que acompanhou os seus dois filhos à clínica de MSF em Nanga, também compartilhou a sua história: “Eu estava grávida quando nossa aldeia foi atacada, no distrito de Meluco, em 2022. Vi minha casa a ser queimada, perdemos tudo o que tínhamos nesse dia. A minha família e eu fugimos para o mato e caminhamos durante dois dias”.

 

É nos meus filhos que encontro forças para continuar a viver.”

– Atija, deslocada pelos conflitos em Cabo Delgado

 

“Desde então, nunca mais fui a mesma e ainda tenho ataques de pânico, insônia e quero ficar sozinha a maior parte do tempo. É nos meus filhos que encontro forças para continuar a viver. Preciso nos assegurar de que temos comida. Estou trabalhando nas machambas [campos agricolas] de outras pessoas, e em troca me dão mandioca seca”, contou ela.

O conflito continua a ter um impacto significativo nos serviços públicos, particularmente com a destruição de instalações de saúde, causando grandes dificuldades no acesso a cuidados de saúde básicos. Em Macomia, dos sete centros de saúde existentes geridos pelo Ministério da Saúde antes do conflito, apenas um está em funcionamento. MSF está apoiando três clínicas na cidade de Macomia e oferecendo assistência médica a famílias que foram deslocadas tanto nos últimos anos quanto as que foram deslocadas recentemente.

A situação de segurança continua volátil em Cabo Delgado e é prematuro falar em estabilização e no regresso da vida à normalidade. Em dezembro de 2023, mais de 540 mil pessoas permaneciam deslocadas, enquanto 600 mil regressaram aos seus vilarejos[1]. Em diversas ocasiões, as famílias que retornam às suas áreas de origem ainda vivem com medo devido aos traumas que viveram e pelo risco de serem novamente deslocadas por novos ataques.

Médicos Sem Fronteiras trabalha em Cabo Delgado desde 2019. Atualmente, trabalhamos nos distritos de Macomia, Mocímboa da Praia, Mueda, Muidumbe, Nangade e Palma, onde prestamos assistência médica e humanitária de forma independente, imparcial e neutra, tanto para as pessoas deslocadas quanto para as que regressam às suas zonas de origem. Em 2023, as equipes de saúde mental de MSF alcançaram mais de 85 mil pessoas em atividades de grupo e realizaram cinco mil sessões individuais em Cabo Delgado.

 

*Informações do Global Data Institute. Disponível em inglês. 

**Os nomes foram alterados para proteger a identidade dos entrevistados.

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