Efeito colateral: a ameaça à saúde infantil em contextos humanitários durante a pandemia de COVID-19

Por Neal Russell e Nadia Lafferty, representantes do grupo de trabalho sobre pediatria de MSF

Efeito colateral: a ameaça à saúde infantil em contextos humanitários durante a pandemia de COVID-19

“Em 1971, ano em que Médicos Sem Fronteiras (MSF) foi fundada, morreram mais de 15 milhões de crianças com menos de cinco anos de idade. Desde então, esse número caiu drasticamente, em grande parte graças a programas médicos que salvam vidas, como os de MSF. Por ano, tratamos cerca de seis milhões de crianças. Vacinamos quase dois milhões de crianças contra o sarampo e ajudamos mulheres a dar à luz em segurança mais de 300 mil bebês. Nós trabalhamos em alguns dos lugares mais perigosos, mais pobres e mais difíceis de se chegar do mundo. Mas as vidas que lutamos arduamente para salvar podem ser facilmente perdidas.

Hoje, o mundo enfrenta a pandemia de COVID-19, uma crise sem precedentes na história das ações humanitárias internacionais de MSF. Embora as crianças sejam menos propensas a se tornarem vítimas diretas do vírus, os efeitos colaterais da pandemia talvez representem a maior ameaça à saúde infantil que já vimos.

Diferentemente dos países que até agora enfrentaram a COVID-19, onde a maior preocupação são os idosos, em países com poucos recursos e sistemas de saúde precários a saúde das crianças geralmente é muito mais frágil. Muitas famílias já conhecem a dor de perder um filho. Então, as mães e os pais que vivem nesses lugares agora veem o futuro dos filhos em risco, devido à perda de acesso a serviços básicos vitais, que foram bastante comprometidos ou até mesmo esquecidos por causa da pandemia.

Embora seja fundamental que todos respondamos rápida e diretamente a essa ameaça global à saúde, os efeitos da resposta à pandemia sobre a saúde infantil, sobretudo em contextos humanitários, podem ser devastadores. Epidemias de Ebola anteriores demonstraram que o número de mortes por causas indiretas pode superar o número de mortes pela própria doença. Com uma crescente mudança global de prioridades e recursos para o combate da COVID-19, as decisões que tomamos agora, na posição de financiadores e implementadores de serviços de saúde, terão um impacto crucial na saúde infantil, durante e após a pandemia.

O efeito direto da COVID-19 sobre crianças que estão inseridas em contextos humanitários provavelmente será maior do que o que foi observado até agora nos países mais ricos. Embora a forma grave da COVID-19 tenha afetado predominantemente os adultos, ainda não sabemos como ela vai afetar as crianças nos locais onde MSF trabalha, que geralmente têm condições e doenças pré-existentes, como desnutrição, tuberculose ou HIV. Também não é possível prever como ela irá interagir com as doenças infecciosas comuns vistas nesses locais, como malária e sarampo.

A ameaça mais perigosa à saúde infantil não será a COVID-19 em si, mas sua consequência indireta a longo prazo. Muito mais crianças morrerão por causa da redução na oferta ou do fechamento de serviços regulares de saúde infantil e haverá um aumento no número de mortes de recém-nascidos devido à perda de acesso a partos seguros e assistência pós-natal. Mesmo nos lugares onde os serviços de saúde infantil estão mantidos, o medo e as informações falsas sobre a COVID-19 estão privando os pais de levar seus filhos doentes aos centros de saúde. Como consequência, crianças infectadas por doenças fatais estão chegando tarde demais para serem tratadas. Essa situação já está sendo relatada em países de alta renda, mas, sem dúvidas, terá consequências muito maiores em locais com menos recursos e sistemas de saúde mais precários.

A COVID-19 chega em um momento muito delicado para as crianças. Já estava previsto que a fome severa irromperia em 2020 em muitas partes do mundo mesmo antes da COVID-19, mas, agora, a desnutrição deve aumentar drasticamente como consequência da pandemia. Os níveis ‘bíblicos’ de fome são uma previsão do Programa Mundial de Alimentos, ao mesmo tempo em que as crianças perderam apoio nutricional vital porque suas escolas e centros de aprendizado estão fechados ou a ajuda alimentar foi interrompida.

Além disso, nos últimos anos, já vimos doenças como sarampo e difteria, que poderiam ser facilmente evitadas com vacinas, ressurgindo em países como a República Democrática do Congo e nos campos de refugiados rohingyas em Bangladesh. Esses tipos de surtos se multiplicam à medida que campanhas de vacinação são suspensas em vários países por causa da COVID-19. Estima-se que, para cada morte de adulto por COVID-19 evitada com a suspensão de atividades de vacinação, mais de 100 crianças podem morrer também como resultado. Desde 2000, mais de 20 milhões de mortes de crianças foram evitadas pela vacinação contra o sarampo; a reversão desse progresso pode ser devastadora, combinada a um aumento dos níveis de desnutrição, que agrava as mortes por sarampo.

A malária vai matar muito mais crianças em 2020 do que a COVID-19 jamais ameaçou fazê-lo. Os países que enfrentarem um pico das duas epidemias ao mesmo tempo, como muitos na África Ocidental, não podem permitir que a COVID-19 se sobreponha às atividades contra a malária. A Organização Mundial da Saúde prevê centenas de milhares de mortes por malária, a maioria entre crianças, se as estratégias de controle e prevenção não puderem ser sustentadas.  
Uma vez que os doadores já estão retirando fundos de instituições multilaterais, é incerto se as perdas nas atividades de saúde infantil poderão ser recuperadas facilmente durante ou após a COVID-19.

No momento em que escrevemos este artigo, mais de 300 mil pessoas morreram de COVID-19. Este número chocou o mundo. No entanto, se a cobertura dos serviços de saúde infantil for reduzida em um período semelhante, pode haver a morte de 253.500 a 1.157.000 crianças por outras doenças que não vão parar de existir só porque a atenção do mundo está voltada para a COVID-19.

Embora organizações como MSF se esforcem para impedir a morte de crianças em contextos humanitários durante esta crise, elas dependerão inteiramente da nossa capacidade de manter e expandir atividades de saúde infantil que salvam vidas. Se houve um momento em que isso era necessário, é agora. Enquanto os holofotes permanecem somente sobre a COVID-19, crianças vulneráveis correm o risco de morrer no escuro. Não devemos permitir que essa pandemia roube o futuro da próxima geração.”

 

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